Exposição permanente em ambiente digital.

COLEÇÃO FULVIA E ADOLPHO LEIRNER DO ART DÉCO BRASILEIRO

Regina Gomide Graz. Mulher com galgo, c.1930. Tapeçaria pintada sobre veludo acrílico. 174,5 x 110 x 3 cm

Textos críticos

Coleção Fulvia e Adolpho Leirner - Ana Paula Cavalcanti Simioni
Gregori Warchavchik e a Casa da rua Santa Cruz - Rodrigo Queiroz

_____

Coleção Fulvia e Adolpho Leirner
[english]

Em inícios dos anos 1960, Fulvia e Adolpho Leirner iniciaram um projeto de colecionismo singular no sistema artístico brasileiro. Desejosos de fazerem de sua casa um ambiente plenamente moderno, a partir de premissas de uma “arte total”, tal como defendia a Bauhaus e a escola de Ulm, iniciaram a aquisição de um conjunto de objetos decorativos. Esses estabeleciam um diálogo harmonioso com as telas construtivistas a que também se dedicaram, e com as quais se notabilizaram como colecionadores. A casa surgia assim como um espaço de integração de diversas tendências geométricas, presentes desde às pinturas até os tapetes.

Foi essa concepção abrangente de modernismo que os impeliu a colecionarem tanto pinturas, esculturas, desenhos – modalidades que são geralmente mais valorizadas pelo sistema artístico – quanto móveis, tapetes, cartazes, rótulos etc. – objetos que tendem a ser menos compreendidos como portadores de valor estético. No entanto, uma das facetas mais ousadas dos projetos modernistas internacionais foi, justamente, aquela que pretendeu romper com a distinção entre arte e vida cotidiana. A partir de um ideal de democratização do acesso à fruição artística, diversos grupos de artistas de vanguarda procuraram levar seus princípios estéticos para um campo ampliado, ou seja, para além dos museus, nas ruas, nas fachadas e letreiros dos edifícios, nas mobílias e serviços domésticos presentes nos lares, no vestuário, ou ainda nas capas dos livros e das revistas.

Esse entendimento do moderno como uma experiência expandida, múltipla e integradora norteou as aquisições que compuseram essa coleção muito singular. Poucos são os colecionadores (as) nacionais atentos à importância dos objetos utilitários para a documentação dos muitos sentidos e possibilidades do modernismo no país. Em geral, pinturas, esculturas, desenhos e gravuras foram, e continuam a ser, as modalidades mais apreciadas. Mas elas contam apenas parcialmente uma história que, na realidade, foi mais ampla e variada do que a que se deixa ver pelas tipologias tradicionais.

O desenvolvimento do “design” no Brasil foi particularmente tenso e contraditório, em virtude da dificuldade em se promover uma síntese entre os padrões construtivos e decorativos de uma modernidade de matrizes internacionais, e o desejo local de se construir um repertório decorativo próprio, autônomo, com as dificuldades técnicas locais. Nesse sentido, o mobiliário de Gregori Warchavchik para a “Casa Modernista” pode ser visto como paradigmático. O arquiteto de origem ucraniana, introdutor do modernismo em São Paulo, procurou projetar um móvel geométrico em aço tubular, em consonância com o que se fazia no exterior, para sua “casa modelo”. No entanto, a inexistência de uma indústria capaz de realizar móveis nesse material o levou a uma solução original: ele construiu as peças em madeira (elemento que havia sido banido pelos modernistas da primeira geração) mas as recobriu com tinta prateada, conferindo assim um efeito metálico ao conjunto. É certo que com isso abandonava um dos principais credos modernistas, “a verdade dos materiais”, mas, como dizia, era o meio de sensibilizar as elites locais para a necessidades de uma efetiva modernização das condições de produção. As contradições intrínsecas desse mobiliário são cruciais para uma compreensão dos desafios e limites, mas também das utopias, que compuseram a aventura modernista no Brasil.

Os conjuntos decorativos realizados pela “família Graz- Gomide” são, possivelmente, os melhores exemplos dos desdobramentos que a “arte total” veio a ter em São Paulo. O núcleo era formado pelo artista suíço John Graz, a quem cabia o projeto geral, o mobiliário, os painéis decorativos e os metais (luminárias, maçanetas etc.); sua esposa, Regina Gomide Graz, a quem cabia toda a produção têxtil (panneaux, tapetes, tapeçarias, cortinas e almofadas) e seu irmão, o pintor Antonio Gomide, que colaborava com painéis e alguns objetos, como abajures. Essa parceria artística e familiar foi responsável pela modernização de diversos lares de membros da elite paulistana, entre finais dos anos 1920 e meados da década de 1940, contribuindo assim para um alargamento do “gosto” pelo moderno. Hoje, infelizmente, esses projetos tão significativos só existem em fotografias. Graças à coleção de Fulvia e Adolpho Leirner algumas dessas peças foram preservadas, permitindo que tais ambientes sejam parcialmente reconstituídos. Vale ainda frisar que, no caso de Regina Gomide Graz, artista que, a despeito de sua contribuição fundamental para a modernização das artes têxteis no Brasil é pouco representada nas coleções museais, a coleção Fulvia e Adolpho Leirner possui o mais importante conjunto de obras legados pela artista, de que se tem notícia.

Trata-se assim de uma coleção que documenta, de modo ímpar, os múltiplos modernismos e seus muitos protagonistas no Brasil. Modernismos esses que procuraram se erigir entre os ditames emanados dos centros artísticos internacionais e as condições periféricas locais; modernismos essencialmente contraditórios, fissurados, mas também criativos e originais.

Ana Paula Cavalcanti Simioni
Docente IEB USP

[topo]

_____

Fulvia and Adolpho Leirner Collection
[português]

In the early 1960s, Fulvia and Adolpho Leirner started a singular collection project in the Brazilian artistic system. Desirous of making their home a fully modern environment, based “total art” premises as advocated by Bauhaus and the school of Ulm, they began the acquisition of a set of decorative objects. These established a harmonious dialogue with the constructivist canvases to which they also devoted themselves, and through which became known as collectors. Their home thus emerged as a space for integration of various geometric trends, from paintings to carpets.

It was this comprehensive conception of modernism that propelled them to collect paintings, sculptures, drawings – modalities that are generally more valued by the artistic system – and pieces of furniture, carpets, posters, labels, etc. – objects that tend to be less understood as bearers of aesthetic value. However, one of the most daring facets of international modernist projects was precisely the one that intended to break with the distinction between art and everyday life. From an ideal of democratization of access to artistic enjoyment, several groups of avant-garde artists sought to take their aesthetic principles to broader fields, that is, beyond museums and to the streets, facades and signs of buildings, in the furniture and household services present in homes, clothing, or even in the covers of books and magazines.

This understanding of the modern as an expanded, multiple and integrative experience guided the acquisitions that made up this incredibly unique collection. Few national collectors are aware of the importance of utilitarian objects for the documentation of the many meanings and possibilities of modernism in the country. In general, paintings, sculptures, drawings and engravings were, and remain, the most appreciated modalities. But they tell only a part of the story that, in reality, was broader and more varied than what is seen by traditional typologies.

The development of “design” in Brazil was particularly tense and contradictory due to the difficulty in promoting a synthesis between the constructive and decorative patterns of a modernity from international matrices and the local desire to build a decorative repertoire of its own, autonomous and that covered local technical difficulties. In this sense, Gregori Warchavchik’s furniture for the “Modernist House” can be seen as paradigmatic. The architect of Ukrainian origin, introducer of modernism in São Paulo, sought to design a geometric piece of furniture in tubular steel, in line with what was done abroad, for his “model house”. However, the lack of an industry capable of making furniture in this material led him to an original solution: he built the pieces in wood (an element that had been banned by first-generation modernists) but covered them with silver paint, thus giving a metallic effect to the set. It is true that with this he abandoned one of the main modernist creeds, “the truth of the materials”, but, as he said, it was the means of sensitizing the local elites to the need for an effective modernization of production conditions. The intrinsic contradictions of this furniture set are crucial for an understanding of the challenges and limits, but also of the utopias, that made up the modernist adventure in Brazil.

The decorative sets made by the “Graz-Gomide family” are possibly the best examples of the developments that “total art” came to have in São Paulo. The core was formed by Swiss artist John Graz, who was responsible for the general design, furniture, decorative panels and metals (luminaires, door knobs, etc.); his wife, Regina Gomide Graz, who was tasked with all textile production (panneaux, carpets, tapestries, curtains and cushions) and her brother, the painter Antonio Gomide, who collaborated with panels and some objects, such as lamps. This artistic and family partnership was responsible for the modernization of several homes of members of São Paulo’s elite, between the late 1920s and the mid-1940s, thus contributing to an extension of the “taste” for the modern. Today, unfortunately, such significant projects only exist in photographs. Thanks to the Fulvia and Adolpho Leirner Collection some of these pieces have been preserved, allowing said environments to be partially reconstituted. It is also worth noting that, in the case of Regina Gomide Graz, an artist who, despite her fundamental contribution to the modernization of textile arts in Brazil, is poorly represented in museum collections; the Fulvia and Adolpho Leirner Collection holds the most important set of works left by the artist known to us.

It is thus a collection that uniquely documents the multiple modernisms and their many protagonists in Brazil. Modernisms that sought to erect themselves between the dictates emanating from international artistic centers and the local peripheral conditions; essentially contradictory, fissured, but also creative and original.

Ana Paula Cavalcanti Simioni
Professor at IEB USP

[topo]

_____

Gregori Warchavchik e a Casa da rua Santa Cruz
[english]

Nascido em 1896 na cidade ucraniana de Odessa, Gregori Warchavchik (1896/1972) inicia seus estudos em arquitetura na Escola de Artes de Odessa em 1912, onde permanece por seis anos. Em 1918 muda-se para a Itália e completa sua formação no Instituto Superior de Belas-Artes de Roma, diplomando-se professor de desenho arquitetônico e arquiteto em 1920. Em 1923, aos 27 anos de idade, desembarca em solo brasileiro para trabalhar como arquiteto da Companhia Construtora de Santos. Estabelece escritório próprio no centro de São Paulo em 1927, mesmo ano em que se casa com Mina Klabin e inicia a construção de seu primeiro projeto autoral: sua residência particular no bairro da Vila Mariana, em um terreno de 13 mil metros quadrados, um dos muitos da região pertencentes à família de sua recente esposa.

Reconhecida como o primeiro exemplar da arquitetura moderna no Brasil, a residência do casal Warchavchik-Klabin notabiliza-se pelo pioneiro uso de soluções que dialogam com as vanguardas modernas no campo da arquitetura e do design, como a eliminação dos ornamentos, resultando em uma superfície uniforme e sem relevos, e o desenho dos componentes do projeto, como luminárias, mobiliário, caixilhos, ferragens e gradis, todos alinhados à abstração geométrica. Essas decisões de projeto demonstram a adesão do arquiteto à vertente construtiva da arquitetura moderna, para a qual o projeto da edificação deve ser compreendido como uma inteligência estética, técnica e social capaz de renovar os hábitos dos cidadãos em todas as esferas da vida.

Ao mesmo tempo em que representa uma radical mudança no paradigma dos desenhos da arquitetura enquanto forma e superfície, assim como dos seus componentes e dos objetos que ocupam seus interiores, a Casa da rua Santa Cruz é a imagem do descompasso entre a disposição moderna do projeto e um ambiente socioeconômico ainda incapaz de fornecer as condições ideais para a sua efetiva realização. Contudo, vale dizer que a aparentemente contraditória fatura artesanal da forma moderna e de seus componentes não caracteriza apenas a residência de Warchavchik. Objetos utilitários projetados por escolas e movimentos como a Bauhaus, o Neoplasticismo Holandês e o Construtivismo Russo também resultam de procedimentos artesanais de fabricação, afinal, a reestruturação da lógica econômica industrial para absorver as demandas do design moderno é apenas mais um item desse "projeto total" que visa transformar o modelo em um protótipo capaz de ser incorporado à produção em larga escala.

Warchavchik é um arquiteto estrangeiro e também o introdutor da arquitetura moderna no Brasil. Contudo, vale destacar que é no círculo social paulista, frequentado por intelectuais, escritores, poetas e artistas alinhados ao modernismo, que o profissional se informa sobre as produções de arquitetos cujas soluções serão incorporadas ao projeto de sua residência particular, sendo as principais referências Adolf Loos, Walter Gropius e Le Corbusier (que visitou a casa da Rua Santa Cruz em 1929).

O léxico das vanguardas construtivas europeias também se prestará como base para outros projetos de Warchavchik da mesma categoria realizados nos anos seguintes, como as residências Max Graf (1929), Luís da Silva Prado (1930), Nordschild (Rio de Janeiro, 1930) e a residência localizada na Rua Itápolis (1929), no bairro do Pacaembu, construída em terreno de propriedade da família do arquiteto e que sediou entre os meses de março e abril de 1930 a "Exposição de uma Casa Modernista", onde foi apresentada pela primeira vez a casa como um modelo integrador de experiências distintas, mas indissociáveis: as artes visuais, a arquitetura, o desenho industrial e também o paisagismo, este último ao cargo de Mina Klabin, autora também do projeto paisagístico de sua residência particular, identificado como uma sensível e peculiar transposição para o espaço livre das paisagens imaginárias elaboradas por Tarsila do Amaral em suas pinturas do mesmo período.

A Casa da Rua Santa Cruz transforma em realidade a relação de unidade entre arte e vida, condição inicial para a própria existência moderna. Contudo, tal unidade não se reduz à harmoniosa relação entre as artes plásticas e a arquitetura, mas identifica um ambiente onde arte e vida são indistinguíveis. Apesar das contradições e concessões que marcam a sua execução, nesse projeto de Warchavchik, a arte não assume o frágil papel de "decoro" para a vida. O salto dessa inteligência estética e ética é justamente a ampliação do caráter historicamente contemplativo da arte para os aspectos utilitários da vida, ou seja, para os objetos necessários à sua plena funcionalidade. Nesses termos, entende-se que a condição moderna da arquitetura, e consequentemente da Casa da Rua Santa Cruz, não incide meramente na forma em si, mas na perspectiva de um futuro projetado como modelo para própria vida: a forma, os espaços e os objetos.

Rodrigo Queiroz
Docente FAUUSP/MAC USP

[topo]

_____

Gregori Warchavchik and the House on Santa Cruz Street
[português]

Born in 1896 in the Ukrainian city of Odessa, Gregori Warchavchik (1896/1972) began his studies in architecture at the Odessa School of Arts in 1912, where he remained for six years. In 1918, he moved to Italy and completed his training at the Higher Institute of Fine Arts in Rome, graduating as professor of architectural design and architect in 1920. In 1923, at the age of 27, he landed on Brazilian ground to work as an architect for Companhia Construtora de Santos. He stablished his own office in downtown São Paulo in 1927, the same year he married Mina Klabin and began the construction of his first authorial project: his private residence in the Vila Mariana neighborhood, on a 13,000 square meter lot—one of the many in the region that belonged to his wife’s family.

Recognized as the first example of modern architecture in Brazil, the residence of the Warchavchik-Klabin couple stands out for its pioneering use of solutions that dialogue with modern avant-garde architecture and design, such as the elimination of ornaments, resulting in a uniform surface without reliefs, and the design of the components of the project—lamps, furniture, frames, ironwork, and railings—all aligned with geometric abstraction. These design decisions demonstrate the architect’s adherence to the constructive aspect of modern architecture, in which a building project must be understood as an aesthetic, technical, and social intelligence capable of renewing the habits of citizens in all spheres of life.

At the same time that it represents a radical change in the paradigm of architectural drawings regarding form and surface, as well as in its components and interior objects, the house on Santa Cruz Street is the image of the mismatch between the modern design layout and a socioeconomic environment that is still unable to provide the ideal conditions for its effective realization. However, this seemingly contradictory handcrafted work of the modern form and its components does not characterize only Warchavchik’s residence. Utilitarian objects designed by schools and movements such as Bauhaus, Dutch Neoplasticism and Russian Constructivism also result from artisanal manufacturing procedures, after all, the restructuring of the industrial economic logic to absorb the demands of modern design is just another item of this “total project” that aims at transforming the model into a prototype, which can be produced on a large-scale.

Warchavchik is a foreign architect and the introducer of modern architecture in Brazil. However, it is in the São Paulo social circle—frequented by intellectuals, writers, poets, and artists aligned with modernism—that he learned about the productions of architects whose solutions will be incorporated into the design of his private residence; the main references were Adolf Loos, Walter Gropius, and Le Corbusier (who visited the house on Santa Cruz Street in 1929).

The lexicon of European constructive vanguards will also serve as a basis for other projects of the same category that Warchavchik carried out in the following years: the Max Graf (1929), Luís da Silva Prado (1930), Nordschild (Rio de Janeiro, 1930), and the residence located on Itápolis Street (1929), in the Pacaembu neighborhood. The latter was built on land owned by the architect’s family and it hosted the “Exhibition of a Modernist House” between March and April 1930, in which the house was presented as an integrating model of different but inseparable experiences for the first time: visual arts, architecture, industrial design, and also landscaping; landscaping was under the responsibility of Mina Klabin, who designed the landscaping of her private residence, identified as a sensitive and peculiar transposition to the free space of the imaginary landscapes of Tarsila do Amaral in her paintings of the same period.

The house on Santa Cruz Street transforms into reality the relationship of unity between art and life, an initial condition for modern existence itself. However, such unity is not reduced to the harmonious relationship between fine arts and architecture, it identifies an environment where art and life are indistinguishable. Despite the contradictions and concessions that mark its execution, in this project by Warchavchik, art does not assume the fragile role of “life decor.” The leap in this aesthetic and ethical intelligence is precisely the expansion of the historically contemplative character of art to the utilitarian aspects of life, that is, to the necessary objects for its full functionality. In these terms, the modern condition of architecture, and consequently, the house on Santa Cruz Street, does not merely affect the form, but the perspective of a future designed as a model for life itself: form, spaces, and objects.

Rodrigo Queiroz
Professor FAUUSP / MAC USP

[topo]




© 2021 - Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo