15 MAR 2014 - 24 AGO 2014
Entrada Gratuita

Pintura como Meio: 30 Anos Depois


PINTURA COMO MEIO, 1983

Com o frescor de um tempo novo no marasmo dos eventos artísticos nacionais começa a se delinear, aos poucos, uma jovem pintura em São Paulo, de que esta exposição acredita poder dar uma visão através de cinco moços – Ciro Cozzolino, Sergio Romagnolo, Ana Maria Tavares, Leda Catunda e Segio Niculitcheff. Não se trata de um grupo, nem de um movimento, pois, ao contrário, cada qual mantém sua personalidade artística como explorador da pintura, tendo em comum o pertencerem à mesma geração (dos 23 aos 26 anos).

O positivo é que não se trata, em seu caso, de uma “retomada” da pintura, fato observado em artistas jovens da década de 1960 que substituíram então o pincel e a tela pelos materiais novos procedentes de uma tecnologia atraente à época, realizando objetos, “happenings”, posteriormente trabalhando com vídeo, super-8, e somente em tempo mais recente retornando ao bidimensional através do desenho e eventualmente da pintura. Tampouco pertencem estes jovens ao abstracionismo gestual ou informal atual, requentado de fins dos anos 1950 e início dos 1960, e ao qual só podem ser mais sensíveis aqueles que não acompanharam essa tendência, de contribuições interessantes entre nós naquele período com artistas como Sheila Brannigan, Ianelli, Tomie Ohtake, Yolanda Mohalyi e mesmo Waldemar Cordeiro entre tantos outros representados nas coleções do MAC USP e mesmo na Pinacoteca do Estado.

De fato, estes cinco jovens já se iniciaram em suas carreiras a partir da pintura. Sem cogitar dela, como disse um crítico espanhol, como de um cadáver que continua se mexendo para espanto de muitos, mas a pintura como linguagem, a pintura como meio, título que eles mesmos deram à sua significativa exposição. Depois de tantas liberdades experimentadas em nosso século é difícil falar de audácias, nem creio que estes jovens artistas pretendam intitular-se de iconoclastas em qualquer sentido. Mas sua atitude diante da pintura assume certos caracteres que os distingue; depois de tantas conquistas ocorridas em todo o mundo – e eles por certo acompanham com interesse o momento artístico, na medida de suas possibilidades – dos padrões convencionais da pintura usualmente vista entre nós. Assim, sem o recorte rígido da pintura como janela à maneira renascentista existente até hoje, espaço representativo aposto e destacado da parede, estas pinturas sobre tela enfatizam aqui o suporte “pano”, sendo uma característica de quatro destes jovens artistas (assim como, também de outro jovem pintor que acaba de expor em São Paulo, Leonilson, com o qual os liga uma afinidade geracional evidente). Surge então a pintura integrada ao ambiente, espaço bidimensional que recebe a pintura e no qual a ausência da moldura confere uma intermediação insinuante como em todos os artistas que se utilizam deste “artifício” desmistificador, entre o espaço real e o virtual de seu trabalho pictórico. Transparece assim uma pintura desnuda em seu naturismo, independente do fato de ser figurativa ou não, porém como comunicação visual plástica válida em si, sem a pose da “grande pintura”, embora substancialmente pintura.

Outro dado comum entre estes jovens reside, sem dúvida, nos referenciais comuns a todos desta geração, apoiados na imagística dos meios de comunicação de massa, na sequência justaposta de imagens que se relaciona tanto com os strips de jornais quanto com os comics (Ciro Cozzolino), quanto com os fotogramas de cinema ou com a sequência movimentada da imagem televisiva reticulada, ou ainda com os registros gráficos que podem conceder um caráter cinético a suas imagens (Sergio Romagnolo), das quais não está ausente o elemento dinâmico, claramente representado. Por outro lado, também um leve senso de humor parece-me implícito em sutil insinuação nas pinturas expressivas de Romagnolo, Leda, Ciro e Ana M. Tavares. Elemento este, o humor, conhecido amplamente na pintura americana contemporânea, ou também como característica definidora do Grupo Site , há já dez anos com realizações arquitetônicas marcantes em várias latitudes dos Estados Unidos. O humor aparece como elemento de perplexidade, ligeiro sorriso no observador desavisado, incorporação das contradições dos meios de comunicação de massa – inclusive o desenho animado e os malabarismos cenográficos da mais alta tecnologia – às artes chamadas tradicionais.

Em Ana Maria Tavares também esse dado está presente em sua pintura que parece dispensar o retângulo do tecido fundindo-se com a parede qual “trepante” (sem a conotação concreta, contudo, dada por Ligia Clark a seus trepantes tridimensionais), com modelados ilusórios a transfigurar o espaço em cores vibrantes. Sergio Niculitcheff, por sua vez, apresenta-se como um formalista de qualidade, absorvido nos valores cromáticos da pintura mais sensível.

É importante ainda uma referência ao profissionalismo que sentimos permear o fazer artístico nestes cinco pintores. Dado que nos faz crer, com otimismo, que não nos encontramos diante de meras promessas ou cometas que cruzarão o céu de nosso ambiente artístico desaparecendo em pouco tempo, porém diante de jovens pintores que lucidamente se iniciam numa carreira com seriedade e garra, enfrentando todos os riscos implícitos na difícil trajetória do artista plástico em nossa sociedade. É uma gente nova que chega. Começa a delinear, aos poucos, uma jovem pintura em São Paulo.

Aracy Amaral
diretora e curadora, 1983





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