MAGNELLI
Período: 13/7/2010 a 12/9/2010
Local: MAC USP Ibirapuera
Com curadoria de Daniel Abadie, professor de História da Arte da Universidade Livre de Bruxelas, a exposição reúne 64 pinturas do artista italiano Alberto Magnelli (1888–1971), realizadas entre 1912 e 1969. Idealizada e organizada por Lisbeth Rebollo Gonçalves, ex-diretora do MAC USP, a mostra traz obras que pertencem a acervos da França e da Bélgica, além de coleções particulares e ao próprio MAC USP.
Magnelli no MAC USP
Magnelli no MAC USP
Lisbeth Rebollo Gonçalves
idealizadora e organizadora da exposição Magnelli
Alberto Magnelli teve relevante presença no cenário da cultura brasileira, no final dos anos de 1940 e início da década seguinte. Foi ele um dos principais apoios de Ciccillo Matarazzo no projeto de construção da primeira grande coleção de arte moderna do País. Francisco Matarazzo Sobrinho decidira apoiar o pleito de artistas e de intelectuais engajados, naquela época, no projeto de modernização das artes: propusera-se criar um museu de arte moderna na cidade de São Paulo. Abria-se, assim, um importante processo de aquisição de obras de artistas ligados às vanguardas que marcaram a primeira metade do século XX. Iniciava-se a construção do que viria a ser na América Latina o primeiro grande acervo moderno internacional.
É preciso destacar que, naquele momento, Matarazzo e sua mulher, D. Yolanda Penteado, adquiriram também obras para suas coleções pessoais e, hoje, todo este conjunto reúne-se no acervo do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo.
Foi por indicação de Alberto Magnelli que várias obras do núcleo originário do acervo do MAC USP foram incorporadas. Artista italiano, residente em Paris, ele era irmão de Aldo Magnelli, amigo de Matarazzo e foi, por intermédio dele, apresentado ao industrial mecenas. Ciccillo confiou-lhe a tarefa de localizar obras de artistas expressivos que estivessem disponíveis à compra, na capital francesa. Diante dessa missão que lhe foi conferida, Alberto Magnelli observava as possibilidades, informava e aconselhava o industrial sobre a aquisição de trabalhos de importantes artistas em destaque no cenário parisiense do pós-II Grande Guerra. Paris era, então, o principal centro artístico internacional, com um mercado de arte muito dinâmico. Algumas vezes, Magnelli adquiria diretamente as obras de artistas com os quais se relacionava, outras indicava onde comprar.
Magnelli selecionou, de início, trabalhos de artistas vinculados à história do cubismo. Depois, sugeriu a compra de obras ligadas à abstração, tendência que, se afirmava mundialmente no cenário artístico. Durante esta tarefa de observar, analisar e selecionar, se desenvolveu importante troca de cartas entre Magnelli, seu irmão e Ciccillo Matarazzo.
Magnelli teve ainda, outra participação fundamental naquela fase da história cultural brasileira. Estando em preparo em São Paulo a abertura do primeiro Museu de Arte Moderna brasileiro, ele facilitou o contato entre Matarazzo e o crítico Léon Degand, que viria a ser, entre julho de 1948 e junho de 1949, o primeiro diretor artístico da nova instituição. Assim, desde o ano de 1947, uma interessante correspondência foi mantida entre o crítico belga e Matarazzo Sobrinho. Degand era adepto do abstracionismo e frequentava, como Magnelli, o circuito de vanguarda em Paris – por exemplo, as galerias Drouin e Denise René que cumpriram importante papel na afirmação da abstração. Foi com base no acervo destas galerias (Drouin e Denise René) que o crítico Léon Degand organizou a mostra inaugural do mencionado museu brasileiro.
A exposição de Alberto Magnelli no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo tem, portanto, forte significação histórica. Ela acontece em São Paulo , no MAC USP, assim como no Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro, com a curadoria do crítico francês Daniel Abadie, conservador do acervo Magnelli pertencente aos familiares do artista. Daniel Abadie vem desenvolvendo sólida e contínua pesquisa sobre a obra de Magnelli e promovendo significativas exposições e publicações sobre sua produção, divulgando-a internacionalmente. Face aos elos que aproximam Magnelli da história do acervo do MAC USP - um dos mais importantes acervos artísticos do País e da América Latina - é justo que uma exposição se faça no Brasil, no momento em que este Museu prepara-se para ocupar sua nova sede: um edifício no Ibirapuera, concedido pelo Governo do Estado de São Paulo, com projeto de Oscar Niemeyer, datado de 1952, edifício histórico inaugurado em 1954, como Palácio da Agricultura. A exposição é, assim, uma celebração deste momento da vida do Museu.
O projeto da exposição Magnelli que vem ao Brasil, iniciou-se no ano de 2007. Após três anos ele se concretiza, graças ao apoio do Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro.
Um conjunto de 63 obras reconstroi aspectos fundamentais da trajetória de Alberto Magnelli, pondo foco em suas preocupações plásticas. A documentação reunida coloca luz sobre as relações do artista com o meio cultural brasileiro, quando se dá a afirmação da arte moderna e o nascimento dos primeiros museus a ela voltados. Em São Paulo , apresenta-se igualmente, uma sala especial onde se exibem obras do acervo adquiridas por intermédio de Magnelli.
Alberto Magnelli foi um dos fundadores do grupo Abstraction Création . Sua poética é original, pois, ligado às vanguardas, estuda, investiga e relaciona aspectos da arte clássica aos valores cubistas e chega à pesquisa abstrata, por via da sua dimensão geométrica. O artista estudou os fundamentos dos mestres do Trecento e do Quattrocento (Giotto, Uccello, Masaccio, Piero della Francesca) e estas referências são evidenciadas no início de sua carreira, que principia já aos 15 anos, em 1909, quando participa, precocemente, de exposições de arte moderna. Conhece o futurismo, mas não adere ao movimento, e desloca-se, em 1914, para Paris. Vale ressaltar a observação de Daniel Abadie: “se Magnelli trava contato com a explosão futurista e isto revela sua potencialidade, é no cubismo que ele encontra a plasticidade de sua obra”.
Em Paris, o artista convive com Appolinaire, Picasso, Léger, Gris, Archipenko, entre outros. Foi o contato com os cubistas que o levou à simplificação de sua composição e à abstração, iniciando, em 1915, a série Explosions lyriques. Retorna à figuração nos anos de 1920, registrando personagens, paisagens e naturezas-mortas, em diálogo com a pintura metafísica de De Chirico e Morandi. Por volta de 1931, visita as pedreiras de mármore, em Carrara, que inspiram a série Pierres éclatées . A partir daí, volta-se ao abstracionismo, integrando, então, o grupo Abstraction Création.
Na década de 1950, seu prestígio e o reconhecimento internacional revelam-se nas participações e no destaque que obtém nas bienais de Veneza e de São Paulo, além da premiação que recebe nos Estados Unidos (Prêmio Guggenheim).
A exposição no Brasil é acompanhada de livro com textos de intelectuais, de marcante presença no século XX, que contribuem para a compreensão da personalidade e obra de Alberto Magnelli.
Os Brasões do Silêncio
Os Brasões do Silêncio
Daniel Abadie
curador da exposição Magnelli
A crítica adora as classificações. Ela transforma a arte em pacotinhos estanques, em gavetas bem arrumadas. Esse escapismo facilita em quase nada as coisas, mesmo que essas classificações, a longo prazo, se estabilizem. Assim, é muito mais confortável invocar o fauvismo de Matisse, do que dizer o que de fato é comum à estridente La Femme au chapeau e aos grandes guaches dos últimos anos; de mostrar, sob a diferença de suas formas, a unidade profunda que é determina pelo nome Matisse. Para isso, prefere-se a sociologia da arte: falar de Manguin, de Othon Friesz, explicar por épocas, movimentos... O que é uma infelicidade para quem não se agarra aos estribos desse comboio. Todo grande pintor, no entanto, escapa à fórmula da História – sendo ele seu iniciador – para instaurar sua própria história; a pintura não é feita por uma série de aventuras individuais.
Assim, Magnelli deveria primeiro esperar que passassem ao segundo plano suas amizades com os cubistas, seus laços com os futuristas, seu papel histórico como iniciador da arte abstrata na Itália, para que, enfim, sua obra fosse apreciada pelo que ela é: uma escritura nova, uma linguagem como nenhuma antes proferida. No entanto, nada havia de iconoclasta nele. Ao contrário, com muito prazer ele mesmo indicava suas fontes: Piero della Francesca, Uccello ou Andrea del Castagno, querendo-se, acima de tudo, um pintor florentino . Foi essa a sua maneira de se defender de uma assimilação rápida aos seus contemporâneos, de ser lembrado, determinando o seu valor pela diferença.
Por ter sido um artista autodidata, ele se atribuiu, desde a origem, uma rara liberdade: ele não teve obrigações com o ensino tradicional e as fórmulas que ele experimentou no início são testemunhas de seus encontros, de suas escolhas. Seu primeiro quadro, de 1907, – uma paisagem pintada por sugestão de um amigo que ele acompanhava numa caminhada – é um exemplo disso. Nesse quadro, ele se aproxima de tudo o que sua pintura rejeitaria, durante o restante da sua obra: um material rico e espesso, um toque virgulée ao limite do expressionismo, uma submissão à visão tradicional, como se ele mesmo precisasse primeiro avançar e depois renunciar, experimentando a tentação. Empírico, o trabalho de Magnelli sente as possibilidades da linguagem pictórica para descobrir nela o que é próprio dele. Assim, dentro de alguns anos de aprendizagem – antes do inverno de 1912-1913, momento em que descobriria sua verdadeira escritura – Magnelli multiplicaria as tentativas: ecos da secessão vienense e do espírito de fin de siècle nos seis painéis de mulheres ou no Paysage à la meule , que ele pintara entre 1909 e 1910; impressionismo com toques de fauvismo em suas naturezas mortas, e mesmo um academismo em seu Autoportrait.
Dessa época indecisa emerge Neve (1910), simples blocos de construção, livres de qualquer narrativa devido à neve que os recobrem, onde aparece pela primeira vez essa escritura sintática, afirmando em grandes planos, um rigor quase geométrico, em que se joga com cores arbitrárias para melhor suscitar a luminosidade exata de um final de tarde. Foi preciso cerca de três anos para que Magnelli pudesse compreender o que havia realizado intuitivamente neste quadro, para que pudesse ver nisso a base mesma de seu futuro sistema plástico. Entretanto, ele se concretizou.
O que ele poderia ver na Inglaterra, onde o negócio de seu tio se instalara por diversas vezes por volta de 1911, se não somente La Chasse de Uccello, não havendo se quer memória de alguma das numerosas exposições de vanguarda dessa época, onde nem mesmo se podiam ver regularmente as obras de Kandisnky? Seus conhecimentos, aliás, eram, sobretudo, livrescos. Em 1913, ele compra em Florença, Du Cubisme de Gleizes e Metzinger, além do Les Peintres cubistes d'Apollinaire, lançado no ano anterior, em Paris. É nessa data que sua obra se transforma. L'homme qui fume ou Le paysage à la cheminée d'usine , os dois quadros com os quais ele inaugura uma escrita verdadeiramente moderna emprestam das reproduções dessas obras sua afirmação do plano da superfície, as passagens largamente pinceladas que transcrevem o volume sem “cavar” a superfície de maneira ilusionista. Tudo nesses quadros, até os seus temas – o Paysage à la cheminée d'usine responde o tema de Usine à Horta del Ebro de Brasque –, testemunham a influência profunda do cubismo, exatamente como Magnelli o tinha descoberto. Somente a cor, que não exibe nenhuma lembrança das medíocres reproduções em negro das obras de Figuière, porta sua marca pessoal. Ele não é em nada compatível com o cubismo que privilegia o degrade, as cores cinzentas e ocres. Ao contar só com o seu jogo de valores, Magnelli inventa totalmente sua gama de cores a partir de tons puros, de início simples degrades de branco, tratados muito rapidamente em largos planos coloridos uniformemente com uma audácia sem equivalentes, a não ser as obras mais sintéticas de Henri Matisse: La Danse ou L'Atelie rouge .
Foram essas exigências pela cor que, ao serem levadas ao seu extremo, fizeram necessária uma rápida evolução de sua obra. A partir de l'Homme à la charrette (1914), Magnelli passa a destacar o desenho, a estrutura da imagem, escolhendo as faixas de cores de um traço mais escuro, inventando sobre a superfície um ritmo autônomo que não tardará – nem sequer um ano – para chegar ao abstrato. Por hora, e tanto quanto durasse aquela espantosa série de Figuras e de Naturezas-mortas do ano de 1914, a linha é uma estenografia abreviada de forma, transcrição ideogramática do sujeito, escritura de um modernismo que poderia, meio século mais tarde, encontra-se sem qualquer problema na obra de um artista próximo à pop-art como Adami. A essa “eterna separação do desenho e da cor” que obcecava Matisse e da qual ele quase acharia uma solução em seus guaches, Magnelli propôs uma outra alternativa em seis de seus quadros: o cerne negro não é para ele como era para Gauguin, uma ruptura entre as faixas coloridas, mas, ao contrário, uma zona neutra, fronteira comum de duas cores inconciliáveis, parte ativa de cada uma delas. Por isso a linha interfere de uma a outra, transbordando por todos os lugares do perímetro, em um jogo de secantes que acentuam o dinamismo da imagem.
Assim liberada dos imperativos do sujeito, a pintura de Magnelli não teria como ser ignorada: em 1915, ele realiza seus primeiros quadros abstratos. Curiosamente, ele mesmo fala de uma “pintura inventada”. Sabia-se o quanto confusa fora, em seu início, a terminologia da abstração. Poucos artistas, no entanto, poderiam reclamar o termo etimologicamente tanto quanto Magnelli. Isso foi efeito de um fenômeno de abstrações sucessivas que o conduziriam da descoberta do cubismo até a pintura sem imagens. Magnelli constantemente insistiu em seu isolamento em Florença naquele ano de guerra de 1915 enquanto realizava o primeiro conjunto de quadros não-representacionais da arte italiana. Esse afastamento, hoje em dia, mais relativizado, pois tal isolamento físico se alimenta de tudo que Magnelli pudera descobrir no ano anterior, pela instigação de Guillaume Apollinaire, durante a sua estadia em Paris e o que mais os serviços de entrega das livrarias italianas o permitiram receber.
Preocupado em se distinguir do futurismo italiano, sobretudo da evolução política posterior desse movimento, Magnelli constantemente negou qualquer laço que não o de amizade com esses artistas, apesar de um anúncio publicado na Lacerba , em junho de 1915, previsse a sua participação na próxima exposição organizada pela revista (e que fora cancelada por causa do ingresso da Itália na Guerra), o que prova que apesar de Magnelli não se mostrar partidário de suas visões, os futuristas encontravam na obra dele aspectos compatíveis com as suas próprias pesquisas. Mas isso ocorre, talvez, dentro do paralelo que há entre certos quadros de Soffici pintados em 1914 e as naturezas-mortas de Magnelli do mesmo ano, no qual aparecem as semelhanças mais evidentes. As aproximações, aliás, são quase certas, tendo em conta os números e os resultados finais dos quadros de um e de outro, o que faz ver nalgumas obras de Soffici a confirmação de sua importância para uma série do jovem artista e do desejo de neles experimentar sua fórmula, marcando mais que uma influência de Soffici sobre Magnelli.
A pintura desse, mesmo que tenha rompido com a representação do real em 1915, não rompeu com a realidade da arte que lhe foi contemporânea. Se suas abstrações, por suas preocupações de controle e de composição, são opostas as das Improvisações de Kandinsky, por exemplo, elas não o são sem se remeterem a outras formas de vanguarda. Dentro de sua escritura elíptica, sua audácia colorida, elas se remetem à invenção espacial do Pierrot Carrousel , de Archipenko, comprada por Magnelli no ano anterior para a coleção de seu tio.
Assim se inscrevendo na arte de sua época, a primeira obra abstrata de Magnelli é a que melhor exibe as marcas que o distingue. Diferente das outras experimentações, tanto anteriores como contemporâneas, sua obra não se apóia em nenhum dado que não dela mesma. Magnelli não recorre, para substituir o sujeito desaparecido, nem a um paralelo com uma outra arte – a música, por exemplo, como Kupka ou Survage – nem à ficção de pintar realisticamente um sujeito não materializado (como os Compénétrations de Balla ou o Rayonnismo de Larionov), não utilizando, de modo algum, as bóias de salvamento das formas geométricas. Ele não deixaria nessa pintura totalmente inventada nada mais que seus componentes plásticos – as relações da forma e da cor – e ele acentuaria, aliás, esse fato dando somente como título dessas obras o seu número de série. Esse esforço exemplar para um pintor de 27 anos – então a maior parte dos outros pioneiros da abstração tinham mais de 40 anos – carregava em si mesmo, por seu caráter absoluto, seu fim.
Como quase todos os outros pintores daquela época, Magnelli não tardou a reintroduzir (a partir de 1916) elementos figurativos em sua pintura, e foi evidentemente no cubismo que ele buscou renovar a sua fórmula. Suas pinturas de 1916-17 reagem às fórmulas geométricas e estilizadas dos quadros de Picasso que lhe foram contemporâneos: l'Arlequin (1916), a segunda versão dos Trois Musiciens ... Mas Magnelli as conferiu uma tensão hierárquica, mais próxima da abstração, graças à neutralidade mesma de seus temas – mulheres e árvores ou elementos de arquitetura – que não possuem os anedóticos arlequins que vão perseguir durante anos a fio a obra de Picasso.
Assim a reintrodução dos elementos figurativos na obra de Magnelli não tem, em si mesmo, nada de espantoso dentro do movimento geral da época. O que há de maior nessa fase, que está entre o dinamismo colorido das abstrações de 1915 e aquele – extremo – das Explosions lyriques de 1918, é o tempo de paralisação, de uma concepção fundamentalmente estática, como se lhe fosse preciso marcar, desde seu início, os limites posteriores entre os quais se situava a sua obra. Como um balanço necessário para produzir o seu maior efeito a partir do ponto mais distante, esse período de 1916-1917 foi, sem dúvida, necessário como antítese para a elaboração das Explosions lyriques com as quais chega ao fim o primeiro período de pesquisa da obra de Magnelli. Ele mesmo mais tarde explicaria a evidente alegria desses quadros como explosões de felicidade, de um sentimento de liberdade reencontrada, sentida com o anúncio do fim da Primeira Guerra Mundial. Mas essa estranha justificação, levando em conta a pouca incidência dos acontecimentos externos em qualquer fase da pintura de Magnelli, não explica nada da sensualidade repentina dessas telas, seu gosto pela intimidade feminina, seu clima baudelairiano que permanece ainda hoje como um dos aspectos mais misteriosos dessa obra.
À ordem apolínea dos quadros procedentes, substitui-se a violência dionisíaca das Explosions lyriques , do qual o primeiro traço é fazer arrebentar a continuidade da linha, a justaposição dos planos coloridos. Nada mais das superfícies coloridas pintadas de maneira impessoal dos anos anteriores. A dinâmica desses quadros é o da fragmentação: o sujeito não aparece por adição de elementos, por imbricações de zonas de cores pinceladas largamente, sem que jamais intervenha o elemento descritivo. A cor, aqui, é mestre absoluta do jogo: ela é conjuntamente linha e superfície, ritmo e composição. É curiosamente nessas pinturas, as mais estilhaçadas de toda a sua obra, que Magnelli imagina, sem lhe dar continuação, uma nova forma de figuração, tendo integrado os meios da arte abstrata como constituintes de seu vocabulário, o que afastou suas obras dos anos 20 do encalhamento de um completo academicismo.
Esse retorno a uma fórmula pictórica tradicional foi diretamente relacionado por Magnelli ao sentimento de ter ido longe demais, devido à impressão de gratuidade de toda a pesquisa artística face à realidade brutal desses anos de guerra. Esse é, aliás, o espírito geral da época. Essa convocação da ordem, esse brusco abandono, das pesquisas de vanguarda, preparada pelas meias-voltas de Derain e Picasso, propagaram-se por toda a Europa assim que a Guerra terminou. Mesmo que Magnelli, selvagem opositor de todo o tipo de recrutamento, não participasse do grupo de Valori Plastici , sua obra por algum tempo de aproxima deles. Paisagens da Toscana, camponeses e mulheres majestosas, veleiros em ancoradouros, isso é exatamente o mesmo mundo da “gravidade silenciosa”, da “imobilidade intolerável como um repouso depois da tempestade” que então pintava Magnelli. Maiores audácias coloridas: aqui são aceitas as cores terrosas e ocres, as sombras verdejantes pelas quais Carra ata nós com a pintura de Giotto, e onde Magnelli acha uma certa escala austera que é uma das singularidades de sua abstração. Pintura de época, os quadros de Magnelli feitos entre 1919 e 1931 são paradoxalmente os únicos a ter valido um sucesso imediato ao artista. Seria o reconhecimento mesmo de um público que até então ignorava a sua pintura ou uma perigosa politização do movimento Novecento que fez Magnelli se dar conta progressivamente do seu impasse? De 1929 a 1931, não se conhece, sucedida a produção pletórica dos anos 20, não mais que uma quinzena de quadros, entre os quais figuram os três primeiros do ciclo Pierres .
É com essa série que Magnelli reata, por um caminho singular, com a vanguarda e com a abstração. Das pedreiras de mármore de Carrare, que provocaram um choque inicial durante sua estadia durante o verão de 1931, nada de anedótico, nem mesmo de realista, reside nessas composições monumentais, qual quer que seja sua forma. A imagem potencial, que é descoberta progressivamente pelo cinzel do escultor, permanece ao inverso, na medida em que Magnelli considera as suas massas informes como dotadas elas mesmas de significação, fragmentos elementares de uma composição inicialmente alusiva, e que, pouco a pouco, são destituídas de qualquer referência ao real. Evidentemente, com efeito, os primeiros quadros de Pierres evocam cenas históricas ou religiosas, como se seus personagens fossem figuras de uma idade rochosa, à maneira de um Arcimboldo mineral ou de arqueológicos bustos de colunas e de tendas pintados por De Chirico. Houve então um tempo na obra de Magnelli, até o seu retorno definitivo a abstração, de uma intenção um tanto surrealista, rapidamente descartadas, pois era demasiadamente afastada das preocupações plásticas, demasiadamente literária. É certo, portanto, que o que faz a densidade do último período abstrato de Magnelli é a soma de tentações e de renúncias, sendo essa a emoção que a separa da abstração geométrica surgida no pós-guerra.
Além daquelas veleidades narrativas, os anos de Pierres foram também, e como que por contra-golpe, os de experimentações materiais. Em lugar da clássica fórmula da pintura óleo sobre tela e como que guiado pelo mesmo espírito de seus temas, Magnelli experimentou novas técnicas e suportes: a tempera com suas qualidades matizantes – uma das constantes da obra abstrata se que seguiria – a tela de juta, os papéis de alcatrão, todos os elementos que têm espaço dentro de uma atividade de colagens intensa, que vai da segunda metade dos anos trinta ao fim da Segunda Guerra e que Magnelli praticaria até seus últimos anos.
Se a primeira experiência da abstração veio até Magnelli numa progressiva decantação de formas figurativas, o que marcaria seu retorno à expressão abstrata em 1935 é um verdadeiro caminho inverso. Assim, com efeito, certos desenhos abstratos têm, com fundo, imagens figurativas – jogadores de futebol ou uma corrida de cavalos – os quais uma rotação de 45° suprime todo o senso legível. O que Magnelli descobriu, durante os quatro anos que correspondem ao período de Pierres, foi que o poder expressivo da imagem surge dos meios plásticos empregados, de sua imprevisível combinação e não da representação de uma imagem, mesmo que ela seja imaginativa. É essa certeza que será o motor de sua obra, de seus tempos sucessivos, de suas transformações, de sua permanência.
O reconhecimento da contribuição de Magnelli à abstração não aconteceu sem ambigüidades. Se sua primeira retrospectiva, na Galeria Rebé Drouin em 1947, revelou um pintor maior – “O evento mais importante deste pós-guerra”, escreveu então Michel Seuphor, “é a entrada em cena de Alberto Magnelli. (...) Finda a guerra, a estrela de Magnelli foi hasteada. É certamente o pintor abstrato mais importante de Paris” – o público e, sobretudo, os jovens pintores, se interessaram de início por suas obras mais recentes, confundindo, dentro da mesma historicidade de abstração recentemente descoberta, as obras de 1915 e aquelas de 1930. O que o novo período abstrato da obra de Magnelli tem de admirável é a sua singularidade dentro do contexto pictórico do pós-guerra. Às escalas bonnardisantes da Escola de Paris, Magnelli opôs uma cor austera e sensual onde predominavam as cores terrosas e seus tons despedaçados – mesmo que, de tempos em tempos, certas telas lembrassem por seus azuis claros ou vermelhos deslumbrantes a maestria do colorista –; às estruturas pós-cubistas e meio figurativas consideradas como “abstratas”, ele colocou formas resolutamente inventadas, prazerosamente monumentais e de um despojamento poderoso. Numerosos jovens artistas na França – de Nicolas de Stäel à Vasarely – não resistiram à evidência daquele vocabulário, ao ponto de passarem por um período mais ou menos longo durante o qual suas pinturas testemunham uma influência direta da obra de Magnelli.
Do pós-guerra ao seu falecimento em 1971, Magnelli realizou um cantochão de sua obra. Tudo o que foi experimentado ou tentado se funde então dentro de uma “escritura de bronze”, dentro de um classicismo que é, bem mais que uma lição do passado, a maestria de seu ser e de sua linguagem. O que fala então a obra de Magnelli é menos a angústia do artista, de sua reação existencial ao mundo, do que da certeza que a arte pode dominar e remediar essa angústia. O distanciamento tão constantemente sublinhado dessa obra não é outra que o do pudor, da necessidade de ultrapassar o grito para instalar as bases de uma linguagem elaborada. É esse o canto que nasce para que se saiba lembrar esses aparentes brasões do silêncio.
Introdução a Magnelli
Introdução a Magnelli
Mario Pedrosa
publicado no Jornal do Brasil (5 de abril de 1958)
Pediram-me, em Bruxelas, para escolher um quadro na exposição dos 50 anos de Arte Moderna e falar sobre ele para a revista Quadrum , o grande orgão internacional de arte, editado na capital belga. O inquérito foi estendido a dez críticos, presentes à mostra.
Escolhi o quadro de Alberto Magnelli – Confrontation . Excluí, de antemão, obras de artistas mortos. Evitei também obras de grandes vedetes internacionais indiscutíveis, gênero Picasso. Magnelli só está representado ali por uma peça, o que é muito pouco para um artista de seu valo. Se escolhi a sua obra foi não somente porque o quadro é dos mais belos da exposição, como porque Magnelli, ele mesmo, apesar de ser um dos pioneiros da arte moderna e um dos mestres de seu tempo, ainda é uma figura discutida.
Um preconceito predomina agora em certos meios de vanguarda: o preconceito contra a geometria. A palavra, em si mesma, aterroriza ou irrita muita gente. Certas elites de grandes centros mundiais, como Paris e Nova York, parecem querer desapertar o cinto. No fundo, preferem a comodidade à liberdade.
A frivolidade filosófica que ali reina chega até a opor a “não geometria” à geometria e uma arte “informe” (sic) a uma arte como forma. Com tal dialética em gelatina, até mesmo as noções mais elementares do fenômeno perceptivo são ignoradas. No entanto, uma organização de ordem geométrica está na base de toda compreensão da realidade, ou da expressão desta realidade, pelos sentidos, como de qualquer manifestação expressiva primária. Eis que há mais de trinta anos que um manifesto genial ( Le Manifeste Surrealiste , de André Breton) nos revelou que mesmo o automatismo psíquico segue uma ordem interior e se manifesta, verbalmente, através das estruturas lingüísticas e nos quadros da sintaxe. Já, aliás, Jaspers nos mostrou como Hölderlin, numa fase em que não era mais capaz de manter um diálogo com seqüencia lógica, escrevia, no entanto, alguns de seus mais belos poemas tanto pelo conteúdo, como pela forma e o rigor da estrutura verbal.
A geometria é coisa viva,e, como a arte, tem sua história. Ainda mais: sua história é inescrutavelmente misturada à história da arte, e, por vezes, com esta confundida. Conduzido pelo pensamento mágico, o homem primitivo é, antes de tudo, um artista. No seu longo esforço de abstração, ele criou, através de suas intuições espaciais, os primeiros dados geométricos. Não foi, nos manuais ou tratados de geometria que os matemáticos foram encontrar esses dados.
Eles os foram encontrar nas imagens fabulosas das idades míticas e nos afrescos das cavernas pré-históricas. A primeira das geometrias, a métrica, ali nasceu. Mas quem, ainda, muito mais tarde (pois que no pórtico de nossa época), abriu todo um novo capítulo à admirável história da geometria, o da perspectiva? Os sábios artistas revolucionários do Quattrocento : os Brunelleschi, Donatello, Alberti, Piero della Francesca, Ghiberti, etc.?
E nossa época? Poder-se-ia verdadeiramente compreendê-la, senti-la, no que ela tem de mais profundo, sem uma noção, vaga que seja, das novas concepções espaciais que as geometrias não-euclidianas, e a topologia em particular, nos permitiram conceber?
A arte, em todos os tempos, tem sido um meio prodigioso, e talvez, com a natureza, o único criador de realidades. Á medida que o universo de nossos conhecimentos se amplia, as dimensões nas quais o homem tem de viver se multiplicam. Elas agem sobre nós, sem que mesmo as percebamos. Melhor do que qualquer homem, o artista as pressente e trabalha, quer queira ou não, sob sua pressão. A obra de Picasso, quando tiver terminado de destruir a figura humana, e de refazer todas as coisas da vida cotidiana numa morfologia exasperada, fabricação de seu incomparável gênio, parasita e destruidor, no fundo o a que aspira é uma visualidade outra, na qual as formas parciais ou singulares do aparelho rotineiro da visão sejam fundidas em esquemas muito gerais, onde toda forma particular, cabeça ou cubo, mão ou círculo, quadrado ou nariz, se equivale. Há aí uma vontade de generalização formal que, de algum modo, coincide com as hipóteses generalizadoras da topologia.
A arte é o que nos dá do mundo sensível um significado objetivo, quer dizer, o que a torna suscetível de ser percebido ou fixado, e comunicado. Não é, pois, no fundo, senão uma modalidade do conhecimento refletido, mas que permanece, entretanto, nos quadros por vezes impalpáveis da realidade sensível. A geometria sensível é, pois, o seu domínio.
As relações geométricas, como grandeza, proporção, etc., participam necessariamente da obra de arte. Se os geômetras profissionais só se interessam por essas relações no abstrato, o artista antes de compreendê-las ou associá-las a outras, a sente, uma a uma, cada qual em si mesma, Já Delacroix proclamava que sem a proporção o quadro não seria dotado de potência. Os “tachistas” não poderão olhá-lo como “frio” ou “cerebral”.
A pintura de Magnelli, se é “geométrica”, é sobretudo de incomparável qualidade sensível.
Magnelli - Press Realese
Magnelli - Press Realese
Imprensa e Divulgação
Sérgio Miranda
(11) 3091.3018 / 3091.1118
smiranda@usp.br
O Museu de Arte Contemporânea da USP apresenta a exposição Magnelli , em sua sede no Ibirapuera, de 14 de julho a 12 de setembro de 2010. Com curadoria de Daniel Abadie, professor de História da Arte da Universidade Livre de Bruxelas, a exposição reúne 64 pinturas do artista italiano Alberto Magnelli (1888–1971), realizadas entre 1912 e 1969. As obras pertencem a acervos da França e da Bélgica, além de coleções particulares brasileiras e ao próprio MAC USP. Apresentada no Rio de Janeiro entre abril e julho deste ano, a mostra foi idealizada e organizada por Lisbeth Rebollo Gonçalves, ex-diretora do MAC USP.
Magnelli foi um pioneiro da abstração, membro destacado do grupo Abstración Création de Paris. Em Florença, o contato com os Futuristas o instigou ao modernismo e, mais tarde, em Paris, se identificou com o Cubismo. " Se Magnelli trava contato com a explosão futurista e isto revela sua potencialidade, é no cubismo que encontra a plasticidade de sua obra ", diz o curador Daniel Abadie. Convivendo com Appolinaire, Picasso, Léger, Gris, e Archipenko, entre outros, é o encontro com Matisse que influencia a composição de interiores com figuras humanas, em cores fortes e contornos pretos. " Encorajado pelo exemplo de um dos mestres incontestáveis da pintura moderna, Magnelli pôde dar início a outro estágio ao espalhar blocos uniformes e não modulados de cor, circundados por uma linha negra, para produzir o imediatismo ousado dos pôsteres publicitários, cujos elogios estavam sendo cantados por Apollinaire ", escreve Abadie no texto de apresentação da mostra.
A aproximação com os cubistas levou Magnelli à simplificação de sua obra e à abstração, iniciando, em 1915, a série Explosões Líricas . A partir de 1917, experimentou as figuras geométricas relacionadas ao cubismo sintético. Depois de 1920, retornou à figuração sob a influência da pintura metafísica de Giorgio De Chirico e Giorgio Morandi. Em 1931, uma visita a Carrara, Itália, inspirou a série Pierres Eclatées (Pedras explodindo) - sintoma de seu retorno ao Abstracionismo. Até retomar a abstração de uma vez por todas, houve um momento em que Magnelli se engajou em uma tendência quase surrealista, que ele rejeitou rapidamente por ser muito literária e sem considerações práticas e artísticas. A partir da década de 1950, o reconhecimento internacional veio com sua participação na Bienal de Veneza e na I Bienal de São Paulo (Prêmio Aquisição), e com o Prêmio Guggenheim de Nova York.
Magnelli manteve estreita ligação com o Brasil, exercendo papel importante na fundação do Museu de Arte Moderna de São, em 1949. Muito próximo de Francisco Matarazzo Sobrinho, patrono do Museu, Magnelli morava em Paris e fez muitas aquisições para o museu paulista, oferecendo um contínuo aconselhamento a Ciccillo Matarazzo para a construção do acervo do MAM SP. Hoje, essas obras integram o acervo do MAC USP.