Um tema de longa duração
Ana Avelar
Em Monumentos Temporários, o corpo de Fyodor Pavlov Andreevich é um instrumento de investigação das
relações humanas. Particularmente interessado nos desdobramentos do trabalho escravo na contemporaneidade,
ele compõe um rol de performances que duram por sete horas. (São ações reais). Elas são levadas à cabo em
paisagens especificamente escolhidas por seu significado simbólico para a situação brasileira - o coqueiro
solitário, a praia com urubus, o mar revolto, a única árvore que resta numa terra arrasada resultado de um
incêndio, avenidas conturbadas das metrópoles, o poste. Também são registradas e transformadas em
objetos-performances: caixas que portam fotografias, ou em vídeos, que, para serem vistos, exigem certa
dedicação por parte do interessado.
As imagens nos cutucam. São incômodas. Nos fazem encolher e tensionar. (O estrangeiro ousa apontar o dedo;
franzimos o cenho). A iconografia de castigos físicos infligidos aos escravizados, ontem e hoje, que o
artista registra, constitui um episódio que a história brasileira reluta em reconhecer. Reluta porque é
racista e porque mascara esse racismo dentro de uma mítica da 'democracia racial'. Porque silencia diante
do privilégio de uns e da luta de outros. "O privilégio cega porque a natureza do privilégio é cegar",
afirma a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie.
O artista visual não é um antropólogo, tampouco um sociólogo; esse não é seu lugar. Sua atuação no mundo é
da ordem da escuta e do diálogo. Entretanto, ele pode lançar mão de estratégias e procedimentos
pertencentes a essas áreas do conhecimento científico - e não raro o faz. O performer, em particular - e
historicamente, dado que a performance é uma arte radical desde sua origem -, usa seu corpo politicamente,
coloca-o à prova, mais que frequentemente arrisca sua integridade física, com o objetivo de produzir
situações nas quais o público acaba por refletir sobre seu modo de se relacionar com o outro.
Diante disso, numa chave que remete à pesquisa antropológica, Andreevich investiga o Outro, mantendo-se
aberto e sendo ele mesmo modificado nesse processo. Ele está amarrado, pendurado, nu. Guarda o silêncio
porque a reação alheia é o que interessa. Aguarda. A estratégia de "resistir à longa duração", como o
artista se refere ao conceito que permeia a maior parte de suas performances, possui como objetivo último
levar a uma transformação da subjetividade (não apenas dele próprio, também daqueles que presenciam sua
ação). Para Andreevich, resistir ao risco - físico e psicológico, ao sofrimento e à dor - é ser honesto
diante da experiência da performance, respeitá-la em sua integridade.
Sendo assim, os Monumentos Temporários são objetos que se constituem de meios diversos - a performance, a
foto, o vídeo, a escultura (por que não?) - e não pretendem se fixar na paisagem. O objetivo desses objetos
híbridos é existir dentro de um prazo de tempo determinado e apresentar-se como desdobramento resultante
de um labor físico intenso. Como o artista afirma, "são estruturas que não se gravam em pedra, embora gozem
de um sentido contínuo de momento". Se o monumento inscreve a memória na paisagem, os trabalhos de
Andreevich produzem memórias da dor anônima e, principalmente, da persistência humana em permanecer em
movimento.
© 2017 Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo