ENTRE A INSUBORDINAÇÃO E A REGRA

No filme Je vous salue Saravejo (1993), de Jean-Luc Godard, em certo momento, no meio de sua fala contundente, o cineasta declara: “... a cultura é a regra, a arte é a exceção”. Se levarmos em conta que os museus são aparelhos de cultura e, logo, instituições que estabelecem regras, o que é, no limite, um museu de arte senão uma instituição que tem como função adequar a arte a determinadas regras que aplaquem, ou tentem aplacar, a insubordinação intrínseca a qualquer verdadeira manifestação artística, cuja ocorrência e/ou configuração sempre se dá como desvio?

Se o museu tem como funções colecionar, pesquisar e exibir e, como corolário deve, portanto, comprometer-se em documentar, restaurar e, em muitos casos, reproduzir para preservar, é possível afirmar que o faz a partir de uma série de normas, regras que acabam, no limite, por diminuir o potencial exclusivo de cada obra existente em seu acervo.

Mas a arte resiste a essas regras impostas pelos museus de diversas maneiras. Ávidas por manter seu caráter de exceção, vários trabalhos exercitam essa sua natureza manifestando-se por meio de materiais precários ou mesmo perecíveis, por ações transitórias etc., reivindicando sua opção pelo desvio a qualquer norma, a qualquer regra.

O museu, frente a essas obras cuja insubordinação compromete, muitas vezes, a integridade física delas próprias, o que faz? Quando não consegue adaptá-las aos seus critérios preestabelecidos de conservação e restauro, retira-as das salas de exibição. Resultado: rebeldes às normas, essas obras ficam como que exiladas nos recônditos da instituição, relegadas ao esquecimento ou então a um improvável momento em que as regras museológicas consigam recuperá- las, ou descartá-las de vez.

Para muitas dessas obras de arte, o exílio ou mesmo o descarte representam a vitória final contra o museu, contra a cultura instituída. E, de alguma maneira, elas, com tal atitude, resgatam o lado mais interessante da arte desde meados do século XIX, pelo menos: seu caráter belicoso, insubmisso.

Um museu de arte contemporânea mesmo consciente dessa cisão às vezes intransponível que o separa da arte sabe, por outro lado, que por seus compromissos de origem, é seu dever criar condições para que essas manifestações (mesmo que muitas vezes contra elas próprias) possam ser conhecidas e estudadas pelas gerações atuais e futuras.

Neste momento em que o Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo coloca-se em obras para a mudança para a nova sede e para as comemorações de seus 50 anos, uma questão tornou-se fundamental: rever seu acervo dentro de uma perspectiva menos canônica. E não apenas seu acervo de obras insubmissas, porém devidamente integradas à tradição da arte do século XX (a exposição Alfredo, Eleonore, Fang e Mira: aspectos da pintura na Coleção Theon Spanudis é um exemplo dessa atitude), mas igualmente aquelas cuja insubordinação as Entre a insubordinação e a regra levou, às vezes durante anos, aos depósitos do Museu. São obras de naturezas bastante distintas, cujas características de excepcionalidade exigem que toda a Equipe do Museu se debruce sobre elas: curadores, restauradores, documentaristas... Algumas apresentam problemas que a Equipe sozinha não conseguiria resolver. Daí, então, a necessidade de contar com artistas, cientistas, curadores e técnicos em conservação de outras instituições que a auxiliem a resolver essas questões tão específicas.

O MAC USP poderia desenvolver essa iniciativa a portas fechadas, resolvendo os problemas possíveis e, no final do processo, apresentar ao público uma exposição, na qual as obras recuperadas (mesmo que brevemente, muitas vezes) fossem apresentadas como parte de um espetáculo midiático. No entanto, o Museu, buscando ser fiel ao seu espírito universitário – museu público e voltado para a pesquisa de sua coleção – concluiu que seria oportuno expor algumas de seus trabalhos insubmissos ainda “em obras”, ou seja, em processo de recuperação.

O público poderá, então, acompanhar essa mostra, em constante mutação, na qual objetos e instalações serão apresentados em seus estágios problemáticos e problematizadores das normas institucionalizadas de conservação e restauro. Acompanhará o processo de transformação das mesmas, por meio do trabalho e da discussão produtiva entre a Equipe do Museu e convidados. Participará, enfim, do debate que envolve esse território ainda incógnito que cobre o trabalho de colecionar, estudar, preservar e exibir a produção artística contemporânea.

O MAC USP acredita que, assim procedendo, cumpre seu papel, enquanto instituição compromissada com a preservação, o estudo e a exibição dessas obras e, ao mesmo tempo – e dentro de seus limites, como instituição cultural –, respeita a excepcionalidade de cada um dos trabalhos de arte que coleciona, visando as novas gerações de público.

Diretoria MAC USP