25 MAR 2017 - 30 JUL 2017
Entrada Gratuita

 

Os Desígnios da Arte Contemporânea no Brasil


Os Desígnios da Arte Contemporânea no Brasil
Luisa Duarte

Vivemos em um mundo saturado de imagens e asfixiado de informações. Despertamos e começa o fluxo - e-mail, WhatsApp, Telegram, Facebook, Instagram, sites de notícias, etc, etc. Esse circuito no qual estamos inseridos, e do qual somos criadores e criaturas, trabalha com vias a nos dispersar, causando um sintoma que torna-se emblema de nossa época, qual seja, o déficit de atenção. Estamos imersos em redes que reproduzem aos bilhões todo tipo de informação na forma de imagem e texto, para serem consumidas e descartadas em igual velocidade. Criando assim uma dinâmica de fastio e amnésia constantes. Mais e mais torna-se custoso mantermos o foco em um mesmo objeto, um mesmo texto, um mesmo filme. Esse modo de ser atual obviamente se desdobra na nossa capacidade de envolvimento com o fazer artístico. Pois se a arte é derivada do mundo que habita, ou seja, traz consigo as marcas de seu tempo, é, também, resistente a esse mesmo mundo. Extemporânea, exigindo justamente um grau de deslocamento do fluxo cotidiano de informações para que seja absorvida. Ler um livro, ver um filme, entrar em uma exposição e de fato vê-la, tudo requer um duplo movimento: algum grau de deslocamento e, ao mesmo tempo, de envolvimento com o mundo que habitamos.

Seria fácil afirmar a produção de pintura, num contexto como esse, como simples sinônimo de resistência, espaço que reivindica uma temporalidade dilatada, lugar da contemplação, meio resistente à aceleração dominante da contemporaneidade, espaço no qual pode-se erigir um campo de trabalho que demanda tempo de quem faz e solicita paciência de quem vê. De algum modo a pintura é, sim, um pouco de tudo isso. Mas não nos enganemos, a mais antiga das linguagens não é de todo imaculada. Sabemos como a incorporação da imagem reprodutível, da fotografia, foi e é seminal para o fazer pictórico da segunda metade do século XX.

Será justamente nesse ir e vir, nessa zona de resistência ao mundo e incorporação do mundo que irá transitar o conjunto de trabalhos apresentado em Desígnios da Arte Contemporânea no Brasil, projeto concebido e curado por Jose Antonio Marton. Os nove artistas selecionados, provenientes de diferentes regiões do Brasil, têm em comum a pintura como principal linguagem de suas pesquisas, ainda que por vezes seus trabalhos caminhem por outros meios. Mas note-se, são maneiras de lidar com o fazer pictórico muito diferentes as encontradas nas obras de Alan Fontes, Ana Prata, Fernando Lindote, James Kudo, Paulo Almeida, Rodrigo Bivar, Sergio Lucena, Tatiana Blass e Ulysses Bôscolo. Todos foram convidados a participar do projeto tendo em vista a realização de uma obra que evocasse uma região ou paisagem específica de um Brasil que, como sabemos, são muitos Brasis, constituindo-se genuinamente plural. Daí termos o "Corcovado" sob o ponto de vista de Ana Prata, a Copacabana, de Tatiana Blass, os Lençóis, de Rodrigo Bivar, as Cataratas, de Alan Fontes, ou ainda o Ibirapuera, de Paulo Almeida. A etapa seguinte da curadoria desenhada por Jose Antonio Marton desdobra-se em uma exposição temporária no MAC USP com a presença de todos os artistas e a publicação do livro que hoje temos em mãos, de modo a exibir e registrar tanto as obras realizadas especificamente para o projeto como um conjunto maior da produção de cada um dos nove selecionados.

O resultado que testemunhamos revela, assim, a singularidade de cada uma das poéticas em jogo, a pluralidade da produção pictórica existente hoje no Brasil, e a resistência a se criar um imaginário óbvio tendo como premissa a paisagem de um país tropical. Os Lençóis de Bivar são pura abstração; assim como Bonito, de Lucena; o Corcovado de Prata, longe da magnitude da montanha carioca "real", ganha uma escala humana; já a Copacabana de Blass nos aparece sob o signo do estranhamento diante de uma cena teatral passada entre quatro paredes, distante de qualquer clichê que o nome do bairro famoso possa remeter. Mesmo quando índices de uma paisagem solar aparecem, casos de Lindote e Boscolo, trata-se antes de uma construção permeada por um diálogo crítico com o seu referente, jamais um duplo da realidade de cunho naify.

Diferentemente do caminho trilhado por discípulos de um Gerhard Richter, cuja obra seminal se dedica à exploração das estruturas de constituição da imagem, e igualmente distante do ethos neo-expressionista dos anos 1980, essa produção recente realizada no Brasil "funciona menos como um inventário de estruturas e métodos intelectuais de decompor a imagem e mais como formas a partir das quais se podem contar outras histórias". Seguindo esse pensamento proposto por Tiago Mesquita, estamos diante de pinturas que, a partir de imagens, nos revelam mais do que as próprias imagens poderiam mostrar. Ou seja, é como se os nossos olhos, embaçados pelo excesso a que somos acometidos desde que acordamos, fossem encontrar a sua capacidade de enxergar não ali, no lugar mais óbvio, a reprodução fotográfica, mas sim no gesto pictórico. Diante de um mundo que há muito se tornou simulacro, onde perdemos o vínculo com o referente primeiro, a pintura surge para nos restaurar a chance de um elo insuspeitado com esse mesmo mundo.

Os nove artistas reunidos nesse livro reafirmam, cada um a seu modo, essa possibilidade guardada no encontro com a arte e, mais especificamente, com a linguagem pictórica. Seja pela via da abstração, da evocação de cena teatral, da apropriação imagética, do diálogo com elementos gráficos, em todos os caminhos somos convocados a polir as lentes de nossas vistas cansadas de tanto ver e nada enxergar.

Em meio a uma produção contemporânea marcada pelos vínculos com a realidade, fazendo que por vezes o tema supere a obra, os trabalhos selecionados por Jose Antonio Marton se destacam, justamente, por não se colocarem nesse lugar de composição de narrativas sobre o real. Antes são manifestações que nos recordam o que certa vez afirmou Hannah Arendt: "Os únicos objetos que parecem destituídos de fim são os objetos estéticos, por um lado, e os homens, por outro. Deles não podemos perguntar com que finalidade? Para que servem? Pois não servem para nada. Mas a ausência de fim da arte, tem o 'fim' de fazer com que os homens se sintam em casa no mundo".

Assim, Os Desígnios da Arte Contemporânea Brasileira, ao ter como premissa o elo com uma determinada paisagem do Brasil, finda por nos revelar que essa evocação da realidade, quando se dá no campo da arte, longe de apresentar um duplo do real nos traz, isto sim, a surpresa e o inaudito. Cada um dos nove universos poéticos reunidos por Jose Antonio Marton espelham a multiplicidade da produção contemporânea do Brasil atual, mesmo dentro de uma mesma linguagem, qual seja, a pintura. São todos desígnios que, sem estardalhaço, nos acordam de um sono profundo gerado, paradoxalmente, por um estado de permanente atenção. Nos aproximemos desses desígnios que a arte nos oferta a fim de instaurar, quem sabe, diferentes modos de habitar o presente, menos ancorados no fluxo de informação e mais ligados àqueles da invenção, menos movidos sob o signo da aceleração constante, e mais capazes de engendrar um tempo mais lento, próprio do fazer pictórico. Quem sabe assim possamos, evocando Hannah Arendt, nos sentir mais em casa no mundo.





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