3 SET 2016 - 5 FEV 2017
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Gustavo von Ha - Inventário; arte outra


Inventário; arte outra
Gustavo von Ha

Embora o gesto possa ser exemplar sem visar a efeitos tão ruidosamente espetaculares, ele é indissociável de uma intenção de parecer ou mostrar, por onde já se introduz, ainda que discretamente, a ideia de espetáculo.
Jean Galard

Os trabalhos de Gustavo von Ha aludem ao mito de um gesto artístico heroico. Uma marca sobre o suporte deixada pelo artista-criador que fundaria, assim, algo novo e original. Desta vez, para discutir noções como cópia, simulação e apropriação, Von Ha escolhe a visualidade da pintura gestual - não-geométrica, não-figurativa, também conhecida como expressionista abstrata, abstrato-lírica ou informalista. Inventário; arte outra constitui-se de uma seleção de imagens que provoca nossa sensibilidade, nos seduz pela cor e pelo gesto. E é essa nossa apreensão que o artista intenciona desestabilizar.

As poéticas abstrato-expressivas do segundo pós-guerra perseguiam, de modo geral, a espontaneidade como ponte de acesso ao subjetivo e ao irracional, frequentemente emprestando a escrita automática surrealista para conduzir o gesto do artista. No ambiente norte-americano, cada artista - os chamados "pintores de ação", nas palavras do crítico Harold Rosenberg - deveria possuir um "estilo" próprio facilmente reconhecível e telas de grandes dimensões eram vistas como uma "arena" para o registro da potência do gesto afirmativo, que caracterizava a presença do artista na obra. "O que devia entrar na tela não era uma imagem, mas um acontecimento", dizia Rosenberg.

Na situação europeia, por sua vez, discutia-se a "incomunicabilidade da forma" - denominada arte outra porque se pensava que fugia à tradição -, num momento de crise diante da realidade do pós-guerra. O informalista era identificado com sua obra, como se ela atestasse o quanto ele era atravessado pelos conflitos existenciais daquele momento - nisso residia a originalidade da produção (sobretudo em Jean Fautrier e Alberto Burri, cuja fortuna crítica frisa repetidas vezes a experiência de guerra de ambos como ela se "traduzisse" formalmente em suas obras).

Von Ha comenta essa pintura inscrita num período conturbado da história da arte, indicando como a originalidade é algo impossível numa história feita de referências e alusões. Ele vai se apropriar, por exemplo, das pinturas de Jackson Pollock que, em si mesmas, reúnem essas referências numa síntese que congrega aprendizados do cubismo (a palheta do cubismo analítico), do muralismo mexicano e da pintura histórica (nas dimensões), da performance (no arremessar e gotejar), do surrealismo (emprestando o all over de André Masson). Em outro sentido, Von Ha vai absorver também a noção europeia da matéria pictórica como uma substância na qual se imprimem sensações e como o registro da mão, que é vestígio, é visto como memória, como exemplificam os trabalhos de Fautrier.

O artista não recria obras. Ele produz imagens possíveis. Mas as matrizes para essas simulações não são escolhidas aleatoriamente - ele seleciona aquilo que interessa apropriar. Não se trata de uma apropriação apenas da visualidade, mas ainda dos procedimentos aos quais recorriam os principais nomes da pintura abstratoexpressiva - como mostra o vídeo. Assim, há uma dimensão de performance que percorre o processo produtivo: as obras aqui presentes revelam apenas parte daquilo que em realidade são. Os resultados apresentam o estudo dos procedimentos, materiais e performances, inventariando para nós o manual do como fazer.

Em particular, as pinturas matéricas, feitas de um acúmulo impensado de tinta, são resultado da raspagem de telas "construtivas", cópias que von Ha realiza de Volpi, Hércules Barsotti, entre outros. Portanto, seu gesto não é aquele que cria, mas o que desfaz a forma clara, de contornos rígidos, metamorfoseando-a num informalismo contemporâneo. Se o construtivo e o informe, poéticas localizadas num mesmo período histórico, diziam respeito a ideologias distintas, atualmente, perderam essas características tornando-se clichês ou, ao menos, ficção.

Von Ha maneja essas visualidades e procedimentos que habitam nosso museu imaginário, mas estão lá apenas latentes. É como se, por meio das citações e alusões, o artista acessasse essas imagens que não conseguimos localizar. Desse modo, ele acaba por revelar a potência impregnante dessas poéticas como visualidade, principalmente para nossa formação artística comum baseada, em larga medida, em reproduções. No entender de André Malraux, uma arte reproduzida é fictícia - em termos cromáticos, das dimensões, da relação tridimensional para bidimensional.

O artista nos lembra o destino dessas gestualidades heroicas como paródia - seja encenada por elas mesmas, como na performance de um Georges Mathieu, seja apontada por artistas da mesma época que atentaram para o esvaziamento de sentido resultante de uma exploração excessiva da imagem do artista conflitado com a realidade vendida por galerias e revistas de variedades, como Robert Rauschenberg e Yves Klein.

No contexto atual, von Ha alerta para a mitificação contemporânea do artista e da arte a partir da posição de um falsificador, aquele que opera no âmbito das reproduções e dos preenchimentos históricos. Ele aponta para o clichê que vigora ainda hoje como imitação, simulação e entretenimento, uma vez perdida a característica transgressora do gesto. Ficamos nesse lugar sem contornos, entre a sedução da pintura e nossa necessidade de um autor e um original, de uma verdade da expressão que garantisse a permanência da aura da obra de arte.

Ana Avelar
Curadora





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