28 SET 2013 - 3 MAI 2015
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León Ferrari: Lembranças de meu pai


León Ferrari nasceu em 03 de setembro de 1920, em Buenos Aires, Argentina. Sua longa vida de 92 anos o fez, segundo sua própria definição, produzir trabalhos sem uma intenção ética específica (desenhos, esculturas e pinturas com os quais explora temáticas diversas, materiais e materialidades numa configuração própria da linguagem artística visual) e, ao mesmo tempo, essa mesma expressão o fez  desdobrar temáticas que interrogam profundamente a cultura ocidental cristã.

León Ferrari formou-se engenheiro pela Faculdade de Ciências Exatas, Físicas e Naturais – UnBA e, por três anos, entre 1955 e 1957, calculou projetos de igrejas que seu pai idealizou como arquiteto. Considerou bastante benéfico para seu trabalho artístico não ter uma formação específica. Em 1952, foi para Florença e lá, e posteriormente em Roma, realizou suas primeiras cerâmicas, cimentos, madeiras entalhadas em pau-santo e esculturas em arame. Nessas últimas, o espaço escultórico constitui-se por diversas direções de fios lineares, predominantemente retos e curtos, em aço inox, bronze, cobre e ouro, soldados entre si em prata. Algumas dessas esculturas são penduradas no teto ( Gagarin , 1961) e outras se instalam em pedestais. Os desenhos abstratos dessa época transformaram-se em escrituras ilegíveis e enredaram-se pelas esculturas em arame que adquirem formas retorcidas ( Torre de Babel , 1964). Interessante que as mesmas linhas emaranhadas das esculturas penetram em caixas ( Reflexões , 1963, Mãos , 1964) e em garrafas ( Garrafas , 1964). Nos anos posteriores, León Ferrari intensificou sua crítica aos preceitos políticos e religiosos e seus trabalhos são realizados sempre com o intuito de profaná-los, desconstruí-los, desordená-los: elementos erótico-poéticos presentes nas séries desses trabalhos servem para denunciar a realidade nas suas faces mais dramáticas. Em 24 de março de 1976, a Argentina sofre um Golpe de Estado. Após ameaças contra sua família, León Ferrari vem para o Brasil, em outubro do mesmo ano. Aqui ficou entre 1976 e 1984.

A mostra León Ferrari – Lembranças de Meu Pai , atualmente no MAC USP Nova Sede, congrega a produção do artista entre os anos 1976 e 1984, época que residiu em São Paulo. Ao chegar ao País, León Ferrari ligou-se a um grupo de artistas que o instigou à experimentação de novos modos de fazer arte: desde desenhar com materiais convencionais, como nanquim, grafite, crayon, canetas esferográficas, tinteiro e carimbo até utilizar modos de impressão em heliografia, serigrafia, fotocópia, microficha, videotexto e offset.

Nesse ensaio de linguagens artísticas, León retoma questões realizadas nos anos 1960. Sem título, s/d. e Lembranças de Meu Pai , 1977, são esculturas em arame. Em Lembranças de Meu Pai , quatro vértices de um paralelepípedo situado verticalmente segregam fios lineares de aço inox, soldados em prata. Essas linhas acumulam-se em verticais e diagonais, obedecendo a uma construção geometrizada. Uma luz projetada de sua base percorre a escultura nos seus interstícios situando, talvez, os vestígios dos cálculos que o artista fez para as igrejas que seu pai idealizou.

As gravuras Partitura , 1978, Memória , 1979 e Sem título, 1984, assim como os desenhos de 1979, são estudos realizados pelo artista sobre signos gráficos, cada um deles caracterizado por desenhos específicos repetidos infinitamente. O que resulta é uma diversidade de escrituras, mas impossíveis de serem decifradas. São páginas e páginas desenhadas pelo artista que criam novas propostas para linguagens tradicionais como o desenho e a gravura.

Nessa mesma época, León usa outros suportes, comuns à sociedade industrial: constrói plantas arquitetônicas sobre poliéster reproduzidas, posteriormente, em heliografia. Nelas utiliza a letra set como elemento gráfico, mas com códigos próprios aos projetos espaciais de edifícios: móveis, portas, divisórias e vasos sanitários. Personagens, também em letra set , ou reproduzidos por meio do carimbo, passeiam por essas plantas. Nas serigrafias dessa fase, esses módulos são repetidos, superpostos, entrecruzam-se e caminham por direções antagônicas.

Cruzamento II e Passarela , de 1981, e Tabuleiro, de 1982, são arquiteturas improváveis . O crítico Roberto Jacoby diz que essas cópias heliográficas, cuja linguagem arquitetônica oferecia um mapeamento de lugares habitáveis, “(...) indicavam que esses labirintos sem lógica (e ‘sem centro') não podiam tampouco pertencer ao gênero da arquitetura utópica. Ninguém se atreveria a projetar um destino tão horrível para a espécie humana”.

Autopista do Sul, de 1982, Sem título, de 1983, Espectadores , Espectadores Recíprocos, e duas serigrafias Sem título, de 1984, são outras modulações propostas por León Ferrari: fazendo uso dos grafismos impressos nas novas mídias, desdobram-se na crítica à cultura de massa: uma visão das inúmeras perdas que a sociedade sofre ao agregar-se nas metrópoles num crescimento vertiginoso; certamente uma visão premonitória do que aconteceria nas cidades no futuro.

As séries La Basílica e Parahereges , em forma de livros, o primeiro publicado em 1985 e o último publicado em 1986, em São Paulo , marcam o início da discussão de León, a partir de 1983, sobre os valores éticos e estéticos da cultura ocidental e, especificamente, sobre as relações de poder e violência dos processos políticos da América Latina nos anos 1970. Marcam a reflexão sobre o erotismo, sobre a mulher como símbolo celebrado na sociedade e a religião cristã como a grande mola propulsora dos estados antiéticos e antiestéticos. La Basílica apresenta colagens de imagens e textos, enquanto que, em Parahereges , Ferrari mescla reproduções de gravuras de Albrecht Dürer, em especial as da série Apocalipse , a desenhos eróticos de caráter pagão. As relações pecaminosas apregoadas pelo cristianismo, em boa parte dessa produção do artista, situam a discussão acerca dos dogmas católicos e das contradições inerentes à prática religiosa. São imagens sobre a sexualidade, às vezes em vias de ser destruída por personagens bíblicos, em outras escamoteadas, escondidas da composição. Castigo, pecado, o modo particular da cultura cristã em lidar com o sexo são relativizadas no plano. A ação artística, nesse caso, foi apenas o partido de juntar formas já prontas em uma composição. Não se trata aqui de ver o resultado da mão do artista, como nos desenhos e gravuras expostos na presente mostra, mas de observar uma reelaboração intelectual na busca da construção de um novo sentido, diferente do original de cada imagem.

A obra Cristo , sd, provavelmente do final dos anos 1980, apresenta um cristo crucificado sobre uma tela. Esse novo realismo, apresentado na exposição A Nova Dimensão do Objeto , no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo – MAC USP, em 1986, traz, mais uma vez, a visão crítica de León sobre as relações de violências implícitas da religião cristã e de violências explícitas da política de defesa promovida pelos Estados Unidos. As fotocópias da série Aviões , de 1986, referem-se a essa mesma preocupação.

Em 1982, León retorna à Argentina, depois de seis anos de ausência, iniciando seu longo caminho de volta que só se dará em 1991, quando deixa definitivamente o Brasil, depois de muitas idas e vindas, e muitas exposições aqui realizadas, como na XVII Bienal de São Paulo, em 1983, no MAC USP, nos anos 1979, 1982, 1985, 1986, 1987, e 1988, bem como em outros museus paulistas e brasileiros.

Carmen S. G. Aranha e
Evandro C. Nicolau





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