Apresentação
Bifurcações Vegetais é uma iniciativa expositiva baseada no diálogo transdisciplinar entre arte contemporânea, arqueologia, antropologia, arquitetura e saberes tradicionais, a
fim de promover e cultivar reflexões críticas sobre os múltiplos e dissonantes sentidos da agricultura, em diferentes contextos sociais, e as complexas formas em que humanos e plantas se
relacionam. A partir de contra narrativas, a exposição questiona o sentido hegemônico da agricultura como um marco civilizatório, único e linear, propondo outros modos de conceber os
vínculos entre humanos e a diversidade vegetal.
O que emerge quando interrogamos essas narrativas a partir da escuta de práticas indígenas, saberes tradicionais e científicos, e da linguagem da arte contemporânea? Em um momento marcado
por crises ambientais e sociais, esta iniciativa propõe não apenas uma exposição, mas os encontros que promovem a regeneração e a produção da diversidade.
As obras — vídeos, instalações, registros arqueológicos, plantas, fotografias, pinturas e documentos — permitem cruzamentos entre arte, ciência e conhecimentos tradicionais para abordar
temas urgentes: colapso ecológico, práticas de regeneração, desigualdade social, a urbanidade em sua diversidade, os modos de vida tradicionais em transformação, e a necessidade de
repensar nossas relações com a terra, os alimentos e os ciclos da vida.
Bifurcações Vegetais
Bifurcações Vegetais propõe refletir, por meio de um diálogo franco-brasileiro, sobre os múltiplos sentidos em disputa em torno da noção de agricultura, uma prática
central, situada no cerne das questões sociais, ecológicas e políticas urgentes da atualidade.
Essa noção desempenha um papel fundamental na configuração de uma história fundacional das formas políticas: as práticas agrícolas teriam levado, inevitavelmente, à constituição de um
modelo sociopolítico e cultural predominante, baseado na domesticação da natureza, na concentração de poder e na formação das cidades; em suma, um pacote civilizacional pautado na
desigualdade, na hierarquia e na exploração. Em uma versão atualizada deste relato linear e teleológico, o seu pilar seria a agricultura intensiva baseada no modelo industrial e extrativo,
hoje em plena revolução digital.
Contudo, a diversidade dos modos de relação com as plantas, passados e presentes, observada a partir de diferentes territórios e pesquisas acadêmicas, têm contribuído para a crítica a
essa ideia de progresso, ao evidenciar a extraordinária multiplicidade e plasticidade dos sistemas políticos. Elas também contribuem para reconceitualizar nossa compreensão sobre as
plantas. Não mais seres passivos, reduzidos a recursos disponíveis aos interesses humanos, as plantas são dotadas de agência, “inteligência” e integram a vida social e política em um
emaranhado multiespécies.
Os povos indígenas de ontem e de hoje nos lembram que a oscilação entre diferentes modelos políticos sempre fez parte dos modos de vida humanos e que a sua cristalização em um modo de
vida estatal e capitalista é recente. Surge, ao mesmo tempo, uma perspectiva diferente da floresta, não mais como um ambiente hostil e pobre, mas como uma megadiversidade em que a
abundância se sustenta em práticas milenares de coordenação entre humanos e não-humanos. Em consonância, a antropologia e arqueologia, combinadas a outras áreas do saber, oferecem
contribuições centrais para essa mudança de paradigma, ao mostrar que a biodiversidade é indissociável da sociodiversidade, ou seja, a diversidade da vida social contribui para a
produção, a conservação e o aumento da diversidade biológica.
Nesta exposição, as obras — vídeos, instalações, registros arqueológicos, plantas, fotografias, pinturas e documentos — apresentam alternativas potentes diante da urgência do nosso
contexto socioambiental e da necessidade de viver de modo diferente em um mundo em colapso. Desde sempre, escolhas coletivas, resistências e alianças com nossos parentes vegetais e
espécies companheiras atuam contra as formas de dominação e nos oferecem outra imagem da vida social pautada no cuidado. Com numerosas colaborações transdisciplinares, reunindo artistas,
pesquisadores, agricultores, agentes agroflorestais e ativistas, esta exposição é guiada pelas noções de contrapoder, contradomesticação, contracolonização e contrapatriarcado. Apostamos
na arte como estratégia que permite criar formas de hibridização, novos espaços narrativos e de expressão política em vista de outros horizontes, alianças e conexão entre práticas e
territórios.
A presença milenar dos povos indígenas no Brasil e seus múltiplos modelos de sociedades flexíveis, reversíveis e sazonais, os ensinamentos das comunidades quilombolas afrodescendentes e
do MST, as experiências feministas e as lutas camponesas e agroecológicas permitem redefinir e ampliar a noção de agricultura. Do mesmo modo, é importante, para fortalecer e ampliar esse
questionamento, levar em conta as abordagens biorregionalistas, as lutas e resistências dos modelos de agricultura camponesa, bem como as contribuições da agricultura biológica na França
e na Europa. Os movimentos altermundialistas internacionais, como a Via Campesina, têm sabido aproximar as perspectivas brasileiras e europeias.
Em cada contexto, guardadas as suas especificidades, vemos a proliferação de iniciativas públicas e privadas que atacam e promovem o desmonte das políticas de proteção ambiental. No
território francês, podemos mencionar, a recente Lei Duplomb, promulgada em agosto de 2025, que reforça o uso de pesticidas, fortalece a pecuária intensiva e amplia os reservatórios de
água, ao mesmo tempo que enfraquece a proteção do meio ambiente e das pessoas. Neste cenário, não devemos esquecer que apenas 10% das terras agrícolas são cultivadas sob certificação
orgânica.
No território brasileiro, por sua vez, o agronegócio foi alçado à condição de principal motor da economia, às custas do avanço da grilagem, do desmatamento, da violência e da especulação
fundiária. A opção pelos monocultivos, muitas vezes transgênicos, empobrece e envenena trabalhadores, solos e ecossistemas, sustentando um sistema de privilégios amparado por uma
financeirização sem precedentes.
As atuais negociações do tratado de livre-comércio entre a União Europeia e o Mercosul correm o risco de intensificar o desmatamento, bem como as degradações ambientais e sanitárias em um
modelo neocolonial. A possível implementação de mecanismos de compensação poderia impedir a capacidade da Europa e do Brasil de estabelecer novas regras ambientais ou sanitárias, bem como
enfraquecer as já existentes.
Nos contextos brasileiro e francês, onde o agronegócio tem uma importância econômica e política crucial, que caminhos podemos construir para criar novos diálogos entre as diferentes
perspectivas sobre a relação entre humanos e plantas? Como podemos colocar em prática formas de agricultura desvinculadas da noção de progresso, do extrativismo e do capitalismo? Podemos
imaginar que a arte cria outros espaços de esperança ativa que ensejam convivências mais complexas, híbridas, simbióticas, espirituais e criativas com as plantas e seus mundos?
Bifurcações: é uma mudança de estado e de escolhas por novas hibridações. A partir de certos caminhos, outros caminhos se criam: eis a importância da multiplicidade.
Emaranhado de intenções que formam resistências, comuns e comunidades.
Aprender com as bifurcações do passado, fortalecê-las e engajar novas possibilidades.
Assim, em nosso contexto de crise climática, econômica e social, que bifurcações podem ser imaginadas por meio de diálogos e colaborações franco-brasileiras na confluência entre
trajetórias existenciais e políticas tão diversas?
Karen Shiratori e Étienne de France, curadores
MAC USP
Bifurcações Vegetais convida a pensar a criação como um processo atento às relações que constituem e sustentam o espaço que habitamos. Aqui, a produção artística se articula a
práticas de cultivo, pesquisa, escuta e convivência, reconhecendo que mundos são feitos em associação com muitos outros seres. A exposição propõe ampliar a noção de prática criadora,
aproximando gestos estéticos, agrícolas, comunitários e territoriais, e valorizando formas de criação que emergem do contato direto com a terra, as plantas e os ciclos de transformação.
Agradecemos à Temporada França Brasil 2025, ao Institut Français, ao Serviço de Cooperação e Ação Cultural do Consulado Geral da França em São Paulo pelo apoio fundamental à realização
desta mostra, que nasce do diálogo entre instituições, coletivos e comunidades de ambos os países. Agradecemos igualmente ao Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo
(MAE), à FAPESP e à Embrapa, instituições parceiras cuja trajetória de pesquisa e cuidado com os saberes territoriais enriquece e sustenta esta iniciativa.
Manifestamos agradecimento aos curadores Karen Shiratori e Étienne de France, cuja escuta, rigor investigativo e sensibilidade poética orientaram o percurso da exposição. Seu trabalho
evidencia que imaginar outras formas de vida social exige processos de co-criação e de partilha intelectual. Agradecemos também à equipe da Casaplanta, que acolheu e desenvolveu este
projeto com dedicação e coragem, enfrentando, com delicadeza e firmeza, os desafios logísticos, políticos e afetivos que acompanham propostas que cruzam escalas, temporalidades e campos
de conhecimento.
Por fim, agradecemos profundamente às e aos artistas, coletivos, comunidades indígenas, guardiãs e guardiões de saberes, ativistas e pessoas pesquisadoras envolvidas. São seus poderes de
criação e trajetórias que dão corpo à multiplicidade apresentada aqui.
Ao receber Bifurcações Vegetais, o museu reafirma o compromisso de servir como plataforma a modos expandidos de criar e aprender, reconhecendo que cuidar da vida em comum é também um
gesto estético, ético e político.
Fernanda Pitta, acompanhamento curatorial, MAC USP
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