A CIDADE E O ESTRANGEIRO
Isidoro Valcárcel Medina
Textos - Imagens
Tadeu Chiarelli - Diretor do MAC USP
A Exposição A Cidade e o Estrangeiro – Isidoro Valcárcel Medina traz à tona os resultados do trabalho produzido por Cristina Freire (pesquisadora e docente do MAC USP). À semelhança da Exposição Hervé Fischer no MAC USP. Arte Sociológica e Conexões, a mostra ora apresentada revela os resultados que Freire desenvolveu/desenvolve com seus estudantes de pós-graduação, tendo, agora, como foco a produção do artista espanhol Isidoro Valcárcel Medina, presente no acervo do MAC USP.
Composta por livros, registros sonoros, textos e outros materiais, tal produção sempre se apresentou como um desafio para o Museu: inserida nas bordas das definições mais tradicionais de obra de arte e documento, por anos esses trabalhos – como os de vários outros artistas conceituais que ingressaram no MAC USP durante os anos de 1970 – permaneceram numa espécie de “limbo museológico”, entre o arquivo e o acervo da instituição. Se tal situação durante anos caracterizou a maneira como o MAC (não) entendia o que tinha em mãos, não seria justo esquecer que essa era a situação geral de grande parte da produção artística mais radical dos anos 1960/70, em vários museus de todo o mundo.
O paulatino distanciamento histórico aos poucos vem mudando esse quadro: faz alguns poucos anos, coletivos de estudiosos vêm estabelecendo redes colaborativas no sentido de criar protocolos que deem conta da complexidade desse tipo de produção (como abordá-la metodologicamente, como catalogá-la, preservá-la, apresentá-la ao público, entre outras questões), conseguindo, aos poucos, trazer à tona esse legado que, se bem estudado e exibido, pode servir de antídoto protéico ao excessivo protagonismo atual de uma visão de arte entendida apenas como objeto de consumo.
Dentro dessas redes, O MAC USP, pelo trabalho de Cristina Freire e seu Grupo de Estudos Arte Conceitual e Conceitualismos no Museu, tem desenvolvido um trabalho que enfrenta as várias vertentes que caracterizam essa arte mais extrema dos anos 1960/1970, contribuindo para a compreensão de que a expressão “arte conceitual” sempre deve ser pensada no plural e que sua abrangência extrapola os limites territoriais dos Estados Unidos e da Inglaterra.
A produção de Isidoro Valcárcel Medina aqui exposta demonstra o potencial desse segmento do acervo do MAC USP: nela, os desafios que se apresentam para o registro e catalogação de itens de uma poética que não se adequa aos procedimentos tradicionais de indexação de obras de arte, transformam-se exatamente em parâmetros para que o Museu possa exceder-se para além de seus limites traçados pela tradição (mesmo a modernista) e reinventar-se enquanto instituição museológica voltada criticamente para os tempos atuais.
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Cristina Freire
Curadora
Isidoro Valcárcel Medina, considerado um pioneiro das práticas artísticas conceituais na Espanha, é ainda pouco conhecido no Brasil embora tenha realizado vários projetos na América do Sul em meados da década de 1970. A Cidade e o Estrangeiro , remete ao titulo da mostra individual do artista organizada no MAC USP em 1976, quando ele veio a São Paulo, a convite de Walter Zanini.
Exibir o trabalho de Valcárcel Medina significa, por um lado, avançar na inteligibilidade de uma obra complexa, por outro, compreender o papel do MAC USP como acolhedor e disseminador da vanguarda artística internacional nas décadas de 1960 e 70.
O conjunto dos trabalhos do artista em nosso acervo compreende registros sonoros e visuais, esquemas, aulas, provas, livros de artistas, publicações de artista além de textos de naturezas diversas.
O desencontro, historicamente tão frequente entre a arte mais experimental e as ferramentas críticas disponíveis para seu entendimento, explica, em parte, o desconhecimento de muitos desses trabalhos.
Está claro que suas propostas interpelam o desconhecido e para tanto o artista inventa diferentes exercícios onde investiga as formas possíveis de comunicação, observando, como um estrangeiro, em diferentes lugares, costumes e práticas sociais. “A arte é um exercício e não uma obra”, explica.
A recusa em usar a fotografia como arquivo de memória privilegiado distingue mais uma vez a atitude de estrangeiro. Não por acaso, Valcárcel Medina prefere outros métodos de registro. Ele faz projetos, planeja situações, desenha mapas, caminha pela cidade, entrevista pessoas, anota, conversa, para, por fim, poder contar histórias.
Suas ações, assim como as circunstâncias criadas em seus projetos, foram raramente fotografadas ou filmadas, como é frequente nos projetos de artistas contemporâneos dedicados à performance.
A coerência que sustenta a prática artística de Válcarcel Medina e seu modo de vida revelam-se fundamentais na avaliação crítica de sua obra. Ou seja, a envergadura dessa trajetória encontra-se nesse ponto de fusão da arte e da vida, em que uma qualifica a outra inexoravelmente.
Cada um dos projetos deste artista, para serem compreendidos, e, portanto, preservados em sua integridade, exigem além de uma extensa pesquisa de arquivos, a criação de um repertório interdisciplinar, isto é, uma apreciação consistente que possa verter sua crítica atroz à ‘irrealidade da vida cotidiana'. O que se apresenta aqui é resultante de uma pesquisa em processo que se desenvolve no Museu impulsionada pelo interesse compartilhado entre os alunos. Nesse Museu universitário onde a pesquisa, o ensino e as exposições devem se articular não poderia ser diferente. Tal exercício investigativo parece cada vez mais significativo no momento atual em que tais premissas críticas encontram-se acuadas pela mercantilização geral da arte no mundo contemporâneo.
Valcárcel Medina sempre trabalhou sozinho. Não se identifica com grupos nem pertence a movimentos estéticos ou políticos. Tampouco podemos facilmente classificar seu repertório de ações e projetos sem correr o risco da simplificação. Tomar medidas, em seu duplo sentido físico e pragmático, escrever cartas, elaborar relatórios, realizar e transcrever entrevistas, detalhar projetos de leis assim como organizar arquivos fazem parte da poética de Valcárcel Medina. As longas explicações e transcrições são inerentes às proposições e o caráter textual do trabalho é um resultante evidente .
Essa ‘arte burocrática' acentua o componente absurdo de certas situações e o riso que inevitavelmente provocam funciona como efeito de um disparador de consciência.
A mostra A Cidade e o Estrangeiro. Isidoro Valcárcel no acervo do MAC USP conjuga-se com o projeto internacional itinerante de exposição Performance em Resistência. 18 fotografias / 18 estórias que propõe a interação entre as ações realizadas no período de 1965-1993, revisitadas recentemente pelo artista e interpretadas por diferentes narradores, em vários países.
Se há algum tempo buscam-se os arquivos de artistas, em especial o legado dos anos de 1960 e 70 até há pouco esquecidos, para encontrar aí novos itens para incluir em catálogos comerciais, o que se propõe aqui é radicalmente diferente. Isto porque “apropriação” significa, nessa mostra, a ativação de um potencial efabulador, expresso em práticas artísticas que se originam naquilo que parece escassear, e se torna artigo de luxo na economia das trocas sociais: a imaginação.