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© 2011 Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo

O Tridimensional no Acervo do MAC: Uma Antologia

Por Tadeu Chiarelli
Curador

A Exposição O TRIDIMENSIONAL NO ACERVO DO MAC: UMA ANTOLOGIA é um exemplo do que significa “recuo estratégico”: como primeira ação do Museu na nova sede, propõe-se uma mostra concisa, mas apta a demonstrar a crise que atravessam as artes visuais, sobretudo a partir do final da II Grande Guerra. Para tanto, como estudo de caso, foca sua atenção no esfacelamento do conceito tradicional da escultura ocorrido nas últimas décadas.

Tomando como cenário de fundo duas referências escultóricas modernistas, vizinhas à nova sede – o Monumento às Bandeiras, de Victor Brecheret, e o Mausoléu aos Heróis de 1932, de Galileo Emendabili –, a exposição apresenta 17 obras, produzidas entre 1947 ( O Implacável , de Maria Martins) e 1997 ( A Negra , de Carmela Gross). Nesses 50 anos assiste-se a vários índices da crise que tomou conta da arte contemporânea. Em primeiro lugar, apontaria o processo de “desmonumentalização” passado pela escultura. Nas obras citadas de Brecheret e Emendabili, apesar de todo ascetismo modernista, permanece óbvio o conceito de escultura, como território do culto ao herói. Esse culto se torna evidente, não apenas pelas dimensões monumentais, arquitetônicas, assumidas pelas duas peças, como também pela manutenção do parâmetro mimético que as une à grande tradição ocidental das artes plásticas.

Nesta mostra ainda é possível perceber como, adentrando nas últimas décadas do século passado, a referência aos modelos da natureza continuam presentes, quer na obra citada de Maria Martins, quer em Figura reclinada em duas peças: pontos , 1969/70, de Henry Moore, quer em Pássaro , 1963, de Liuba Wolf. No entanto, nelas, a referência ao já conhecido é apenas isso, uma referência. Ela surge para sublinhar o caráter agônico da figura que parece metamorfosear-se em vegetal (Martins ), ou para enfatizar os valores plásticos das duas formas em tensão (Moore ). Na peça de Wolf a alusão ao pássaro está mais na necessidade de expressar o ato de voar do que propriamente em registrar as características de qualquer ave.

Outro dado que chama a atenção nessas três peças é a ausência de pedestal. Se na de Moore existe como que uma reminiscência daquele artifício para retirar a obra do contato direto com o espectador (refiro-me à base, também em bronze, que une os dois elementos), as esculturas de Martins e Wolf são autoportantes, evidenciando a proposição de que a obra de arte estabeleça uma relação sem mediações com o público (as bases brancas e “neutras” estão ali apenas para protegê-las e destacá-las, dadas suas dimensões modestas).

Tal proposta também pode ser notada em Festa , 1959, de François Stahly ou, de maneira mais radical, nas esculturas sem títulos, de Ângelo Venosa, 1987, e de Gustavo Rezende, 1990, assim como em Sem título, mas com amor , 1990, de Ernesto Neto. O que parece nelas contar é não apenas a busca por outras possibilidades para a concepção tradicional do termo “escultura”, mas igualmente a singularidade dos materiais, a estranheza da forma, a possibilidade do tato etc. Sobre uma base ou soltas no chão – que, mesmo que por breves minutos, o visitante também habita ao visitar a mostra –, as peças propõem uma experiência em que, ao invés da solenidade que a escultura convencional impõe, o que parece importar é o entendimento da obra de arte como propulsora de novas experiências físicas e conceituais.

Essa mesma disposição em proporcionar novas relações entre o visitante, a obra e o espaço habitado por ambos, está presente em esculturas que, em termos formais, guardam distância daquelas mencionadas nos dois parágrafos anteriores. Refiro-me a Torre , 1957, de Franz Weissmann e Quadrados , 1981, de Sérvulo Esmeraldo. Embora a primeira, pelo título e pela verticalidade pronunciada, reforce a existência subliminar de referências do já conhecido (uma torre, um corpo ereto), ambas dinamizam o espaço em que estão inseridas juntamente com o visitante, a partir de uma regularidade cujo cálculo não lhes diminui a dimensão poética. Pelo contrário: é justamente o tratamento rigoroso das formas modulares articuladas de forma ascensional/lateral que lhes concede, cada uma à sua maneira, a singularidade desejada.

Se em Weissmann e Esmeraldo as formas modulares tendem à expansão, em diálogo com o espaço e o visitante, a peça sem título, 1988, de Carlos Alberto Fajardo – concebida igualmente a partir de módulos – recusa-se a qualquer interação,quer com o espaço, quer com o visitante. De fato, tensa e voltada para si mesma, comporta-se como um desvio, como um negar-se, enquanto obra, a qualquer diálogo capaz de apaziguar sua potência contestadora, capaz de fazê-la esmorecer frente ao perigo de, nesse suposto diálogo, ser devorada, consumida pela própria instituição arte.

O caráter metaforicamente expansível, percebido nas obras de Weissmann e Esmeraldo – e negada naquela de Fajardo, em que o caráter tátil, “quente” dos blocos de carbono, a acumulação dos mesmos presos pelos cabos de aço, retiram da peça qualquer parentesco mais próximo com a dimensão expansível da escultura minimalista – está presente também em outras obras (as esculturas de Stahly, Martins e Wolf são as primeiras provas desta afirmação).

Tanto a escultura sem título, 1989, de Frida Baranek, quanto aquela também sem título, 1954, de Sofu Teshigahara, revelam insatisfação frente à prática tradicional da escultura em conter-se, obediente, a um lugar determinado. Nota-se nelas uma vontade de expandir-se, de ocupar todo o espaço expositivo. Se a obra de Teshigahara pode ser entendida como uma vontade de metaforizar os temores de aniquilamento, típicos na arte do imediato pós-guerra, na peça de Baranek, no entanto, seu caráter expansivo parece meio tímido. Observando um pouco de longe as chapas de ferro que se abrem com certa discrição, impossível não associar aquelas formas a uma tela que busca expandir-se, sair de sua condição bidimensional (a uma certa distância, a escultura lembra uma tela sobre um cavalete).

Em outra situação, a propósito da obra de Amilcar de Castro, tive a oportunidade de me referir ao fato de que, à falta de uma sólida tradição escultórica erudita, alguns dos mais interessantes escultores brasileiros dialogam com a pintura e o desenho. No caso dessa peça de Baranek, creio ser lícito retomar a questão: sua escultura impõe que qualquer consideração que seja feita sobre ela, parta da tradição da pintura (ou que pelo menos leve essa tradição em conta), quer pelo caráter predominantemente planar que ela assume, quer pelo caráter pictórico que as chapas de ferro oxidado conferem à peça.

Algo semelhante pode ser percebido na obra sem título, 1991, de Eduardo e Paulo Climachauska. Composta por dois objetos retirados do cotidiano, a configuração final do trabalho, antes de situar-se no campo do tridimensional, reivindicando uma condição escultórica “plena”, constitui-se nos limites entre o desenho e a escultura, nas fronteiras entre o bi e o tridimensional.

Esculturas que parecem querer expandir-se por todo o espaço, obras que falam tanto de suas especificidades quanto dos seus desejos de hibridação com outras modalidades. Dentro dessa situação conturbada, em que a escultura deixa sua condição de, física e metaforicamente, estar acima de nós todos, a obra Museu do Homem no. 3 , 1971, de Haruhiko Yasuda, nos coloca um problema: uma estrutura de aço inoxidável – também uma espécie de “tela” – colocada diretamente no chão, reflete a nós e à instituição onde a observamos, no próprio momento em que pousamos nossos olhos sobre ela.

A peça de Yasuda também se recusa ao diálogo, semelhante à obra de Fajardo. No entanto, se a escultura desse último opõe-se a qualquer contato justamente por absorver toda possibilidade de reflexão, qualquer troca com o observador ou com o espaço onde está contida, a obra de Yasuda, por sua vez, nega-se ao diálogo pela sua capacidade de, ao tentar refletir o entorno, quase apagar-se enquanto “obra”.

O despojamento formal de Museu do Homem no. 3 torna-se efetivo não apenas pela superfície do aço inoxidável, em que o artista interferiu com discrição, mas também pela sua horizontalidade, parecendo recusar-se a qualquer adequação à tradição escultórica ocidental, pautada na verticalidade. Esse expandir-se pela ênfase ao horizontal, que obriga o visitante a estabelecer uma relação diferenciada com a peça, encontrará radicalidade ainda maior na proposição de Chihiro Shimotani, Impresso sobre rocha , 1973. Nela, a pedra – matéria fundamental para a tradição da escultura – é apresentada na condição resultante de seu processo de extração em 31 pedaços dispostos no recinto da mostra diretamente sobre o chão, alcançando dimensões variáveis. Ao invés de esculpir a matéria bruta, adequando-a aos códigos da escultura tradicional, Shimotani opta por sobrepor a cada um dos módulos a impressão de outro código, a palavra. À retórica da escultura tradicional – que por meio de formas construídas à semelhança das coisas do mundo, enviava mensagens de cunho político, social etc. – o artista responde com a própria desconstrução dessa retórica, ao conjugar a matéria bruta da rocha aos vários significados que ela poderia vir a assumir.

Impossível refletir sobre o trabalho de Shimotani sem relacioná-lo a Parla , 1982, de Cildo Meireles. Se na primeira os códigos da escultura tradicional são como que destruídos pelo processo do artista – que agrega à matéria, de forma direta, significados que anteriormente seriam trabalhados por meio de formas análogas ao real –, na peça de Meireles a estratégia é outra, embora o objetivo pareça ser fundamentalmente o mesmo.

Em primeiro lugar, o artista saca da história da arte uma das peças ícones, não apenas da escultura, mas da arte ocidental, Moisés , de Michelangelo, produzida na segunda década do século XVI. Embora a figura do legislador apareça sentada (fato raro na iconografia dos heróis ocidentais, sempre eretos), a escultura de Michelangelo certifica seu intuito de conferir à figura de Moisés a grandiosidade exemplar de um semideus. Tão apreciada por seu realismo idealizado, reza a tradição que frente ao resultado do seu trabalho, o próprio artista teria pedido à escultura que falasse com ele!

Cildo Meireles, numa operação casada, não se apropria apenas da forma de Moisés , de Michelangelo, para relativizar ou desconstruir os códigos da escultura tradicional. Ele também traz para si, como materiais a serem explorados, o próprio entendimento dessa obra como uma das melhores traduções do conceito de arte como duplo do real e a fama alcançada por Michelangelo como um artista quase divino.

Parla : uma cadeira de madeira e couro e duas formas em granito; a primeira aludindo a uma figura humana, postada sobre a cadeira; a segunda, por sua vez, logo à frente da primeira, fazendo alusão a um banco.

Anulados a grandiloquência da escultura tradicional, o heroísmo da representação e a sofisticação do acabamento ao mesmo tempo descritivo e idealizado da referência original. O que era uma pergunta provocativa do criador para a criatura – Michelangelo, peremptório, teria perguntado ao seu Moisés : “por que não falas?” – transforma-se num imperativo desprovido de qualquer autoritarismo, um convite prosaico para um papo: Parla .

Desmistificadora e, ao mesmo tempo, repleta de mistérios insolúveis, essa ex-escultura de Cildo Meireles atesta, com a sua realidade concreta, como a tradição pode ser revista pela produção contemporânea, sem que essa se torne um mero e acrítico arremedo.

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Se quisermos, veremos ressonâncias da figura hierática, mítica – um ícone do modernismo brasileiro –, de A Negra, 1923, de Tarsila do Amaral, na peça de três metros concebida por Carmela Gross. Além do paralelismo dado pela coincidência dos títulos, não resta dúvida de que seria quase impossível não imaginarmos o trabalho de Gross evocando a imagem concebida por Tarsila, faz quase 90 anos, como quem evoca um espectro ameaçador. Uma alegoria do melhor do nosso modernismo assombrando muito do bom-mocismo presente na arte atual? Uma interpretação possível.

No entanto, o que marca A Negra , de Gross como uma das obras brasileiras mais instigantes das últimas décadas, é sua capacidade de, ao mesmo tempo em que alude a uma imagem emblemática da arte local, impõe sua presença compacta/incorpórea, situando-se no espaço de exposição como uma espécie de buraco negro. Ela é A Negra dos nossos dias e é, ao mesmo tempo, uma forma que recusa qualquer assimilação que a defina, consumindo-a.

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Como visto, esta mostra levanta alguns dados e sublinha parâmetros que ajudam a compreender a complexidade da arte entre os anos 1940 e o final dos anos 1990. Será sobretudo a partir deles que o MAC-USP irá propor a série de mostras que, no decorrer dos próximos meses, complementará a implantação do Museu neste novo espaço. As balizas do MAC-USP para tal empreendimento são as próprias obras que compõem seu acervo.