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UM OUTRO ACERVO DO MAC USP: Prêmios-Aquisição da Bienal de São Paulo, 1951-1963

Ana Magalhães
Divisão de Pesquisa em Arte, Teoria e Crítica
(Click here for english version)

Em 1963, o Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP) foi fundado e recebeu o acervo do antigo Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM). Nessa operação, o conjunto de 1690 obras reunidas pelo antigo museu, desde 1948, foi dividido em três coleções diferentes: a Coleção Francisco Matarazzo Sobrinho (com 428 obras), a Coleção Francisco Matarazzo Sobrinho e Yolanda Penteado (com 19 obras, cuja doação só foi efetivada em 1973), e a chamada Coleção MAMSP (com 1243 obras). Um Outro Acervo do MAC USP reúne um conjunto de obras selecionadas através de prêmios-aquisição da Bienal de São Paulo entre 1951 e 1963 que, à exceção da edição de 1963, passaram ao acervo do MAC USP como Coleção MAMSP.

Criada em 1951, dentro do antigo MAM, a Bienal de São Paulo funcionou com um sistema de premiação, cujo objetivo era o da formação e a constante atualização do acervo do Museu. Muito já se escreveu sobre as edições da Bienal do período, ressaltando seu caráter didático, o quanto contribuíram para a formação de um público para a apreciação da arte moderna no Brasil, e na consolidação de uma história da arte moderna da qual o meio artístico brasileiro começava a fazer parte.
Esse conjunto de obras exibidas na Bienal de São Paulo, que hoje está no acervo do MAC USP, já foi exposto algumas vezes, nas três últimas décadas, para ilustrar a história do evento. Mas, ainda estamos por refletir sobre outra história dessas obras, enquanto acervo de museu. Tirando-se a grande doação que Emiliano Di Cavalcanti fez ao antigo MAM em 1952, o Museu reuniu em sua primeira década 679 obras, das quais quase metade foi de prêmios da Bienal de São Paulo ou expostas e doadas através de suas edições.

Levantamos aqui alguns elementos para compreender que papel o sistema de premiação das bienais teve – à medida que esse acervo foi sendo constituído – e, o que estava em jogo quando se falava de arte moderna naquele momento. Tal como na Bienal veneziana, havia dois tipos de premiação: os prêmios regulamentares e os prêmios-aquisição. O primeiro tipo de premiação era dado nas categorias de pintura, escultura e gravura, dividindo-se entre premiação estrangeira e premiação brasileira. Através dela, costumava-se celebrar o conjunto da obra do artista premiado, mas não estava previsto no regulamento que ele fosse doado ao antigo MAM, ainda que muitos artistas premiados tenham doado pelo menos uma obra ao Museu, nesses casos.

Já os prêmios-aquisição da Bienal de São Paulo eram de fato pensados para compor o acervo do antigo MAM. Partia-se de um sistema de mecenato, em que a direção do Museu convidava empresários, associações e colecionadores a contribuir com uma quantia em dinheiro para que se comprasse uma obra ou um conjunto de obras. Em alguns casos, eram os órgãos diplomáticos dos países participantes da Bienal que intermediavam essas aquisições ou as realizavam. Ao contrário da premiação regulamentar, os prêmios-aquisição da Bienal de São Paulo tinham assim um sentido mais claro de permanência.

Na seleção de 117 obras que fizemos aqui privilegiamos os prêmios-aquisição da Bienal de São Paulo, dentre os quais encontramos nomes e obras talvez bem menos conhecidos para nós hoje, mas que em seu tempo fizeram parte de um debate internacional sobre as tendências em arte moderna, e o que ela significava naquele contexto. Ao reunirmos as obras selecionadas por edição da Bienal, demo-nos conta de que os prêmios-aquisição pareciam continuar a obedecer às categorias da premiação regulamentar, ou seja, compravam-se para o antigo MAM obras representativas da pintura, da escultura e da gravura modernas, com algumas poucas exceções.

Percebemos ainda uma presença bastante significativa de obras em papel. Na história da formação do acervo do antigo MAM e sua continuação no MAC USP, o conjunto de obras em papel compõe quase dois terços do total de obras do acervo. Nesse contexto, elas eram catalogadas dentro da categoria de gravura, ainda que fossem desenhos, guaches, aquarelas ou colagens, obedecendo a uma lógica descritiva dos suportes da arte moderna, que no ambiente das grandes mostras internacionais e dos departamentos dos museus-modelo de arte moderna do mundo ainda parecia pensar em categorias tradicionais. O uso do termo prints and drawings (literalmente, gravuras e desenhos), muito corrente no período, foi o que prevaleceu para nós também. Mas ele esconde a riqueza de técnicas de impressão empregada pelos artistas modernistas. À época, havia uma forte experimentação com as técnicas tradicionais de gravura, aliadas às técnicas reprográficas, ao uso de novos equipamentos gráficos com larga tiragem, que levaram à elaboração de proposições únicas pelos artistas do período. Dentre as obras em papel aqui selecionadas, contamos 12 técnicas diferentes de impressão e gravura, dentre técnicas tradicionais (a maneira negra, a água-forte, a xilografia) e técnicas mais recentes (a litografia e a linoleografia a cores, por exemplo).

Outra grande questão que se coloca diante dessas obras é o debate em torno da abstração, nos anos de 1950 no Brasil e no contexto internacional. No caso brasileiro, fala-se da Bienal de São Paulo como consequência da mostra inaugural do antigo MAM, em 1949, Do Figurativismo ao Abstracionismo, na qual o primeiro diretor artístico, o crítico Léon Dégand, encontrou séria resistência ao seu discurso em defesa de uma arte abstrata, baseada na experiência dos grupos de Arte Concreta, na França dos anos de 1930 – para os quais a presença de artistas como Wassily Kandinsky, Theo van Doesburg, Piet Mondrian e o uruguaio Joaquín Torres-García foram personagens fundamentais. A historiografia da arte no Brasil privilegiou a emergência dos grupos concretistas brasileiros nos anos de 1950 e procurou entender a Bienal de São Paulo em diálogo com essas vertentes. Ao pensar o projeto expográfico para Um Outro Acervo do MAC USP, o arquiteto Gabriel Borba tomou como modelo a composição Tema em duas dimensões (1946) do artista suíço, de raiz concreta, Richard Paul Lohse (participante da I Bienal de São Paulo), que funciona como uma moldura através da qual nos aproximamos das obras aqui mostradas. Ela exprime, assim, a inflexão desse debate, que assistiu também a retomada do modelo de escola de artes da Bauhaus, por via de projetos daqueles anos, tais como a Hochschüle für Gestaltung de Ulm (inaugurada em 1955), a presença e a disseminação de suas ideias no contexto norte-americano. Experiências com a abstração estão em pauta nos anos de 1950, abrindo-se para tendências muito distintas, que envolvem o intenso embate entre a vertente concretista e o abstracionismo informal (ou tachismo), o desdobramento de experimentações com o surrealismo e o interesse pela pintura dita “primitiva” (realizada por artistas autodidatas).

Além disso, no contexto internacional afirmava-se o expressionismo abstrato norte-americano, que no caso da Bienal de São Paulo (tal como lemos nas histórias escritas sobre ela) teve destaque com a sala de Jackson Pollock, em 1957. No entanto, e apesar da política cultural hegemônica norte-americana nos anos da Guerra Fria (que muito contribuiu para a formação de nossas instituições de promoção de arte moderna), não foi isso que se colecionou no antigo MAM – nem também se estabeleceu uma prioridade em se suprir esta lacuna no acervo modernista do MAC USP. Nesse mesmo sentido, temos uma enorme lacuna em nosso acervo latino-americano. Na Bienal dos anos de 1950, havia outra força hegemônica em ação, ela também engendrada pela política externa norte-americana: a União Panamericana, que organizou mostras de artistas latino-americanos nas edições da Bienal de São Paulo. Com sede em Washington, seu objetivo era o de promover a arte latino-americana, expondo artistas cujos países de origem não tinham possibilidade de financiar sua representação na Bienal de São Paulo. Alguns prêmios da Bienal vêm dessas mostras especiais, mas sem efetivamente formar um conjunto coeso de obras latino-americanas para o acervo do MAMSP.

A narrativa de arte moderna que se construiu no ambiente da Bienal de São Paulo passa necessariamente por uma análise das relações diplomáticas e a dimensão política que iniciativas, como essa da União Panamericana, têm no contexto da Guerra Fria. Porém, é fundamental sempre voltar às obras e aos artistas ali presentes para pensá-los como escolhas que estão sendo realizadas ao mesmo tempo em que se escreve uma história da arte moderna. Portanto, eles devem ser também compreendidos como possibilidades abertas pela pesquisa artística, o que mostra que o acervo do antigo MAM era contemporâneo ao seu próprio tempo. A partir desse ponto de vista, propusemos o destaque de seis obras que nos permitiram adentrar esse universo por percursos transversais. São elas: Figura com Árvores, litografia de 1949 do inglês Robert Adams; O Viking, pintura de 1955 do norte-americano Ralph Du Casse; Preto Independente no Espaço, pintura de 1955 do alemão Fritz Winter; A Soma dos Nossos Dias, escultura de 1954/55 da brasileira Maria Martins; Defesa da Flor, tapeçaria de 1957 do francês Émile Gilioli; e Sereias II, pintura de 1958 do nicaraguense Armando Morales. Através delas, desvendamos outras histórias e relações que abrem perspectivas de ressignificação de nosso acervo modernista.