28 MAR 2015 - 29 JAN 2017
Entrada Gratuita

 

Goeldi / Jardim: A Gravura e o Compasso


Goeldi/Jardim: a gravura e o compasso

Ao entrar em contato com as coleções de gravuras presentes no acervo do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo de Oswaldo Goeldi e Evandro Carlos Jardim, que somam um pouco mais de uma dezena de estampas para cada artista, deparei com algumas aproximações inauditas entre os trabalhos desses dois mestres da gravura no Brasil.

Os trabalhos de Goeldi, na sua maioria, são dos anos cinquenta e os de Jardim pertencem à sua produção da década de sessenta. Os anos finais do primeiro e as gravuras mais inaugurais do mestre paulistano aproximam-se numa tangência sutil. Há uma precisão de cartógrafos na aferição das distâncias entre o aberto da geografia e as vistas de um mundo internalizado, medido pelos afetos, tanto nos descampados cariocas quanto na periferia de Interlagos, um bairro de São Paulo muito distante naquele momento. Os centros e as margens, nas gravuras e nas cidades, perdem seus significados habituais, e com isso dissipam-se as hierarquias. Como se pudéssemos imaginar a cartografia como uma atividade inquieta, regulada por anotações difusas, numa reorganização cotidiana e sempre inconclusa.

Há em ambos, do ponto de vista da construção de suas matrizes, uma enorme economia de meios, que se revela nas linhas xilogravadas de Goeldi, frestas exatas de luz, e nas gravuras em metal de Jardim, que combinam as vezes a linha cortada, direta e indiretamente, com chapados xilográficos secos, erodindo a matéria corroída em contraluz. Tudo mediado pelas provas, também econômicas, diagramáticas, sem fogos de artifício. Os instrumentos e os procedimentos para esses dois artistas são prolongamentos de seus desenhos meditativos, são extensões, para esses gravadores caminhantes, de suas anotações, e nunca circunscrevem a relação das matrizes e de suas estampas à repetição mecânica. A invenção de seus objetos gráficos é sempre balizada por experiências imaginativas e fabricantes.

As figuras são muito diferentes nos imaginários dos dois artistas, assim como a escanção espacial relacionada as vistas da paisagem. Mas têm em comum a capacidade de instauração de um silêncio eloquente, que nos faz companhia por muito tempo, mesmo depois que não mais contemplamos diretamente esses mundos diferentes, varridos por uma luminosidade crepuscular, por uma vista crispada dos fenômenos. Talvez a força dessas elocuções nasça da vivência profunda dos meios elegidos por esses dois mestres, que nunca são escolhas táticas, mas encontros viscerais entre um temperamento e uma materialidade peculiar.

A gravura produzida no Brasil, nunca é demais relembrar, é muito jovem, não somando nem dois séculos de prática efetiva. Goeldi e Jardim estão tão próximos de nós quanto dessas origens, se considerarmos as reflexões que suas obras nos levam a desenvolver sobre a carpintaria dessa história. A força dessa juventude está nessas gravuras e por isso elas são referências tão seminais, portadoras a um só tempo das qualidades ensaísticas do que se inaugura e da dignidade dos projetos solitários e essenciais movidos por uma consciência de que desenho e gravura também são lugares para habitar.

As transfusões da noite mental para a noite física, as antecipações e apreensões em contraluz e os mergulhos nas luminosidades dos escuros convivem nesses dois mundos tão diferentes e estranhamente próximos das gravuras de Oswaldo Goeldi e Evandro Carlos Jardim. As cidades, nos anos cinquenta do Rio de Janeiro e dos sessenta em São Paulo, assim desbastadas, medidas, refletidas, numa cartografia do corte, nessa arqueologia anímica, revelam-se tão distantes e tão aproximadas nos seus desenhos e nos seus destinos.

Claudio Mubarac
Curador





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